Por Marcia Surdo Pereira
É fundamental que estejamos informados sobre como a crise dos opioides começou nos EUA na década de 1990, posteriormente se espalhando para o Canadá e Europa, a fim de podermos atuar na sua prevenção.
A crise dos opioides refere-se a uma grave emergência de saúde pública marcada pelo aumento expressivo do uso indevido de opioides prescritos e ilícitos nos Estados Unidos, resultando em dependência generalizada, overdoses e mortes. Essa crise, que se desenvolveu ao longo de várias décadas, envolve múltiplos fatores, como a prescrição excessiva de analgésicos opioides, o ressurgimento do uso de heroína e a disseminação de potentes opioides sintéticos, como o fentanil.
A crise gerou estatísticas alarmantes em 2021, com quase dois terços das mortes por overdose de drogas nos EUA sendo atribuídas aos opioides. Uma parte significativa dessas mortes envolveu opioides prescritos e fentanil de rua, que foi adulterado com outras substâncias de potencial abuso, como metanfetamina e cocaína.
A overdose de opioides ocorre quando a quantidade ingerida sobrecarrega a capacidade do corpo de metabolizar e eliminar a droga, resultando em efeitos tóxicos. A manifestação clínica mais grave é a depressão respiratória, que pode ser fatal. Outros sinais incluem sonolência que pode evoluir para estupor ou coma, flacidez muscular, pele fria e úmida, pupilas contraídas (miose) e, em casos mais graves, edema pulmonar, bradicardia, hipotensão, hipoglicemia, obstrução parcial ou completa das vias aéreas, ronco incomum e morte. Se não tratada, essa sequência pode evoluir para parada respiratória e, eventualmente, parada cardíaca.
O tratamento principal para a overdose de opioides é a administração de naloxona, um antagonista que reverte rapidamente os efeitos tóxicos ao deslocar os opioides de seus receptores. A American Heart Association recomenda o reconhecimento precoce da overdose, a ativação dos serviços de emergência e a administração de naloxona, juntamente com medidas de suporte, como garantir uma via aérea desobstruída e oferecer ventilação assistida, se necessário. O monitoramento contínuo é fundamental devido ao risco de renarcotização, já que a duração da ação da naloxona costuma ser mais curta que a dos opioides envolvidos.
Os esforços para enfrentar a crise dos opioides incluem a implementação de diretrizes de prescrição pelo CDC, o desenvolvimento de formulações com propriedades que dificultam o abuso, e a ampliação dos tratamentos assistidos por medicamentos, como buprenorfina, naltrexona e metadona. Além disso, agências federais e estaduais, como a FDA e a DEA, adotaram medidas para regular a prescrição de opioides e aprimorar o uso de programas de monitoramento de medicamentos controlados, como por exemplo o uso de metadona domiciliar.
No Brasil, observa-se um crescente consumo de medicamentos opioides, tanto aqueles obtidos sem prescrição quanto os vendidos em farmácias mediante receita médica. A Pesquisa Nacional sobre Uso de Substâncias de 2015 revelou a prevalência do uso não médico de analgésicos opioides em uma ampla amostra probabilística no país, com taxas que se aproximaram das observadas nos EUA no início dos anos 2000. Relatos recentes sobre o aumento do uso de fentanil no Brasil são preocupantes, mas uma crise semelhante à dos EUA ainda pode ser evitada. Muitas vezes, o uso de opioides é combinado com álcool e benzodiazepínicos. Considerando a atual ‘crise dos opioides’ relatada nos países da América do Norte, é crucial que essa tendência seja monitorada de perto no Brasil. A codeína, um opioide leve geralmente indicado para dores moderadas, responde por mais de 90% das prescrições, com oxicodona e metadona representando o restante.
A Senad divulgou um informe sobre apreensões, uso e controle de fentanil em um evento realizado no âmbito do Comitê Técnico do Sistema de Alerta Rápido, com a participação de representantes do governo e especialistas no tema, em 3 de maio de 2023, após a apreensão de uma carga de fentanil no estado do Espírito Santo. A secretária Nacional de Políticas sobre Drogas, Marta Machado, ao tratar da questão do fentanil no Brasil, ressaltou que ‘as apreensões têm sido esporádicas e não representam uma epidemia, como nos Estados Unidos’.
Nesta mesma reunião, o coordenador do Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) de Campinas, Dr. José Luiz da Costa, ao apresentar casos de exposição a drogas adulteradas com fentanil (como maconha sintética, cigarros eletrônicos e selos de LSD), destacou a importância de treinar as equipes de saúde, especialmente as de emergência, para identificar possíveis casos de intoxicação por opioides e realizar o manejo adequado do paciente, incluindo o uso do antídoto naloxona e fitas de teste.
No Brasil, a Anvisa afirma que a codeína, oxicodona e fentanil estão sujeitas a receituário de controle especial, além de impor restrições aos seus precursores. Desde 2022, também foi implementado um controle mais rigoroso sobre o armazenamento, a guarda e o descarte de narcóticos em ambiente hospitalar (RDC nº 757, de 27 de outubro de 2022).
Então em um mundo acelerado, com pouca tolerância ao desconforto, é essencial adotar mais cautela na prescrição de opioides, além de promover o treinamento e a criação de protocolos para o tratamento adequado, especialmente da dor crônica, minimizando o risco de dependência química e evitando práticas como o ‘doctor shopping’. Especialistas reforçam a importância de reprimir o tráfico e orientação adequada aos usuários e aos dependentes. A implementação de estratégias integradas entre os setores de saúde, segurança pública e administrações hospitalares é crucial para proteger a saúde pública e evitar o surgimento de uma nova epidemia de opioides em nosso país.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS:
- https://www.cdc.gov/opioids/basics/epidemic.html
- Reports of rising use of fentanyl in contemporary Brazil is of concern, but a US-like crisis may still be averted
- Bastos, Francisco I. et al. The Lancet Regional Health – Americas, Volume 23, 100507
- Rising Trends of Prescription Opioid Sales in Contemporary Brazil (Tendências crescentes de venda com prescrição de opioides no Brasil contemporâneo), publicado no American Journal of Public Health.
- III LNUD_PORTUGUÊS.pdf (9.038Mb).
- https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614
- Lançamento do 4º Informe do SAR – Fentanil: Caracterização e presença no Brasil: https://www.youtube.com/watch?v=Fh9PjVZAkJo&t=2776s
Márcia Surdo Pereira
Médica Psiquiatra
Respostas de 3
Excelente texto! Esse tipo de informação deveria ser amplamente divulgada a fim de fomentar boas práticas aos prescritores e protocolos de regulação mais rigorosos em serviços de saúde.
Excelente texto, aborda este assunto delicado com precisão e sensibilidade! Parabéns pela contribuição 👏🏼👏🏼👏🏼
Além de muito bem escrito, objetivo e esclarecedor quanto ao panorama mundial e nacional da crise dos opioides, esse texto se mostra muito necessário. É através de informação de qualidade como esta que a população médica, os pacientes e os comitês de saúde poderão estar mais conscientes desta situação e, a partir disso, pensar em manejos e em estratégias de prevenção desta crise em potencial.