A oitava rua mais descolada do mundo:  O fascínio e os riscos do álcool na juventude

Por Selene Franco Barreto.

Recentemente, em uma eleição promovida pela revista Time Out para escolher as dez ruas mais descoladas do mundo, a Arnaldo Quintela, que fica em Botafogo, no Rio de Janeiro, ficou com o oitavo lugar. Repleta de bares, restaurantes e com uma movimentação intensa, a via atrai tanto moradores locais do entorno quanto turistas. A singularidade dessa rua está em seu foco quase exclusivo em estabelecimentos que promovem o consumo de álcool, em detrimento de opções mais diversificadas, como museus, lojas e atividades de lazer que enriquecem a experiência cultural e social. A distinção que, à primeira vista, parece celebratória, levanta uma questão preocupante: o que está por trás dessa “descolada” atmosfera? 

Fotos do acervo da autora.

A rua é repleta de cartazes e mensagens com apelo emocionais e “bem-humorados” que promovem o consumo de bebidas alcoólicas, aspecto que merece reflexão. Apesar do glamour que a escolha representa, essa rua se tornou o símbolo de uma geração que celebra a bebida, mas ignora os fatores de risco associados a esse hábito. A valorização e o magnetismo do álcool como parte da experiência social podem estar alimentando uma cultura de excessos, reforçada por mensagens divertidas e atrativas que, embora engraçadas, minimizam os perigos do consumo irresponsável.

Esses cartazes contêm humor, que é uma ferramenta poderosa, capaz de unir as pessoas e criar uma sensação de comunidade e igualdade. No entanto, quando esse humor é direcionado à promoção do álcool, o cenário se torna mais complexo, pois cria uma motivação emocional para o consumo. A trivialização do hábito pode contribuir para a normalização de comportamentos arriscados, especialmente entre os jovens e adultos, que estão vendo essas mensagens como um incentivo a beber. 

Exemplos de alguns cartazes espalhados  ao longo da Rua Arnaldo Quintela

Fotos do acervo da autora.

O investimento que a indústria realiza para conquistar novos consumidores é voraz. As estratégias de marketing, com propagandas inteligentes que promovem bebidas alcoólicas, são intensas e agressivas, moldando comportamentos. O álcool é comercializado por meio de publicidade e técnicas de persuasão sofisticadas, que conectam a bebida a atividades culturais, causas sociais e humanitárias, esportes, patrocínios, além de associá-la a corpos saudáveis, pessoas bem-sucedidas e valores de grande apelo na sociedade contemporânea. O público jovem é o principal alvo dessa abordagem, principalmente os adolescentes, que estão em uma fase de buscar seus pares e grupos, alguns se afastam um pouco mais das famílias, agem com impulsividade e são desafiadores.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em consonância com a Lei 13.106 de 2015, proíbe a venda de bebidas alcoólicas para menores de idade. Essa legislação visa proteger os jovens dos perigos do consumo precoce, reconhecendo que essa prática pode comprometer seu desenvolvimento saudável, a formação de vínculos sociais. De acordo com Marques (2023), estudos realizados na década de 1990 já indicavam que as chances de um jovem experimentar substâncias de forma abusiva aumentam quando ele tem contato com álcool, tabaco e maconha em idades precoces. Essa exposição também eleva o risco de dependência na idade adulta, além de torná-los vulneráveis a diversas situações perigosas, como sexo sem preservativo, doenças infecciosas, múltiplos parceiros, gravidez na adolescência e violência sexual.

Essa proibição reflete a compreensão de que o consumo de álcool durante a adolescência não apenas prejudica o funcionamento cognitivo, mas também está ligado a comportamentos de risco e à possibilidade de buscar outras drogas ilícitas no futuro. Os adolescentes são especialmente suscetíveis aos efeitos do álcool sobre um cérebro ainda em amadurecimento. É importante destacar que o álcool, uma substância tóxicometabólica, atua diretamente nos neurônios e em outras células (como as células gliais), perturbando o metabolismo oxidativo e podendo levar a disfunções neurobiológicas que afetam o comportamento e a cognição (Lima, 2008). Ao criar um ambiente mais seguro, o ECA busca garantir que os jovens possam se desenvolver plenamente, longe das influências prejudiciais que a romantização do álcool pode proporcionar. 

Percentual de adolescentes que experimentaram bebida alcoólica alguma vez na vida, com indicação de intervalo de confiança de 95%, por sexo, segundo as grandes regiões (2019).

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, 2019.

Segundo um estudo da International Wine and Spirits Research (IWRS) – que faz uma análise do mercado de bebidas de 160 países, entre eles o Brasil –, as vendas desse setor atingiram US$ 11 bilhões em 2022, representando um crescimento de 37,5% em comparação com 2018. O mercado brasileiro é o terceiro no ranking dos maiores consumidores de cerveja no mundo, com registro de aumento de vendas da bebida no ano de 2023.

Dados alarmantes reforçam essa preocupação: de acordo com a Organização Pan Americana de Saúde (Opas), 3 milhões de pessoas morrem anualmente em decorrência do consumo de bebidas, representando 5,3% do total de mortes – uma a cada 10 segundos. É preocupante que 13,5% dessas mortes ocorram entre jovens de 20 a 39 anos. A pesquisa Covitel, que reuniu dados referentes aos primeiros 3 meses de 2023, apontou que cerca de 22% da população adulta brasileira havia consumido bebida alcoólica de forma abusiva e 7% responderam que tinham bebido de forma regular nos 30 dias anteriores ao levantamento.

Fonte: Brasil, 2024.

É importante reforçar que o álcool é uma droga psicoativa e depressora do sistema nervoso central (SNC), que causa danos significativos para a saúde física e mental. Seu uso está associado a mais de 200 problemas de saúde, com estreita relação com as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) – como problemas cardíacos, câncer, doenças respiratórias, diabetes, ansiedade, depressão, pensamentos suicidas e outras doenças mentais –, além de contribuir para o agravamento de questões socioeconômicas e violência doméstica. Isso impacta não apenas os indivíduos que bebem, mas também suas famílias, a segurança nas ruas e a economia.

A importância da prevenção universal e de políticas públicas

Em um momento em que a sociedade busca fortalecer ações de prevenção ao uso de álcool, a celebração de uma rua que promove essa cultura parece contraditória. É necessário compreender os fatores pessoais, sociais e ambientais para que se desenvolvam campanhas de conscientização e programas de prevenção universais assertivos, voltados para a melhoria da saúde pública. É fundamental informar sobre os riscos do consumo excessivo, desenvolver materiais educativos e sensibilizar diversos segmentos da sociedade, como escolas e famílias.

A prevenção não deve ser encarada apenas como uma responsabilidade do governo, mas como um esforço coletivo e contínuo. Sabemos qual o impacto do uso abusivo do álcool na sociedade e precisamos informar, fazer campanhas, desenvolver e/ou aperfeiçoar os programas e políticas públicas, desenvolver materiais educativos que sensibilizem diversos segmentos. Promover a educação sobre o uso de risco do álcool, criar espaços de diálogo e oferecer alternativas de entretenimento saudável são passos essenciais. Algumas ações que podem ter impacto social positivo e fortalecer os fatores de proteção:

  • Educação e conscientização: Programas educacionais que ensinam sobre os riscos do consumo de álcool e as habilidades para resistir à pressão social. O desenvolvimento de currículos que abordem o álcool e outras drogas de maneira honesta e informativa, integrando discussões sobre saúde mental e tomada de decisões para empoderar os jovens.
  • Envolvimento da família: A participação dos pais e responsáveis nas discussões sobre álcool é muito importante. Estudos mostram que quando há conversas abertas e honestas com os filhos sobre o uso de substâncias, os jovens são menos propensos a consumir álcool. A prevenção começa em casa, como um ato de amor que deve impor limites, estimular o comportamento ético, ensinar sobre valores morais e coerência por parte daqueles que educam.
  • Ambientes sociais seguros: Criar ambientes de socialização que não enfatizem o consumo de álcool, o tabaco e a maconha pode ser uma estratégia eficaz. Incentivar eventos e atividades recreativas que promovam a diversão sem a presença de bebidas alcoólicas ajuda a normalizar essas experiências entre os jovens.
  • Campanhas de conscientização: Iniciativas que promovem os fatores de proteção, fortalecendo a resiliência dos jovens, sua autoestima, incentivando comportamento seguro e destacando os riscos associados ao álcool podem mudar percepções sociais. Mensagens que desafiem estereótipos sobre o consumo de álcool, especialmente em contextos festivos, são vitais.
  • Políticas públicas: O desenvolvimento e a implementação de políticas públicas que restrinjam a publicidade de bebidas alcoólicas voltadas para os jovens e aumentem a fiscalização sobre a venda de álcool a menores são ações essenciais.

Além disso, há estudos que apontam medidas que são boas apostas para reduzir o uso nocivo do álcool, como:

  • Aumento de impostos sobre bebidas alcoólicas.
  • Proibições ou restrições abrangentes de publicidade de álcool em vários tipos de mídia.
  • Restrições à disponibilidade física de álcool no varejo.
  • Maior atenção e conscientização da população em relação às leis já existentes e que se referem às bebidas alcoólicas.

Portanto, ao explorar essa rua tão celebrada, que possamos levar em conta não apenas a diversão e o humor, mas também as mensagens que queremos transmitir – a de uma vida saudável e com liberdade responsável para nossos jovens. A ironia de uma rua descolada que potencialmente estimula comportamentos prejudiciais é uma oportunidade para repensar o que realmente significa ser descolado em um mundo que necessita de mais consciência e responsabilidade, principalmente em relação aos jovens. 

Fotos do acervo da autora.

Rio de Janeiro 16 de outubro de 2024.

Referências: 

*Todas as fotos são do acervo da autora, tiradas na 8ª rua mais descolada do mundo em agosto de 2024.

ALCOHOL. Key Facts. World Health Organization, 28 jun. 2024. Disponível em:

https://www.who.int/en/news-room/fact-sheets/detail/alcohol. Acesso em: 15 out. 2024.

BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Lei n. 8069, 13 jul. 1990. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei8069_02.pdf . Acesso em: 14 out. 2024.

COVITEL: A magnitude do impacto das doenças crônicas não transmissíveis na população adulta brasileira. Observatório de Saúde Pública. Disponível em: https://observatoriodaaps.com.br/covitel/. Acesso em: 14 out. 2024.

LIMA, José Mauro Braz de. Alcoologia – o alcoolismo na perspectiva da saúde pública.

Rio de Janeiro: MedBook, 2008.

MARQUES, Ana Cecilia Petta Roselli et al. (org.) Alcoolismo Hoje. 4. ed. Porto Alegre:

Artmed, 2023.

NATIVIDADE, A.; CORTES, C.; BARATA, D.; TURCI, S. R. B. Curso Estratégias de Prevenção de Doenças Crônicas Não Transmissíveis. Rio de Janeiro: ENSP/CDEAD, 2023. 1 recurso eletrônico. Material didático digital do Curso Estratégias para a Prevenção de Doenças Crônicas Não Transmissíveis.

ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde. Global Status Report on Alcohol and Health 2018.

Genebra, Suíça: Organização Mundial da Saúde, 2018.

PESQUISA Nacional de Saúde do Escolar – PeNSE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/educacao/9134-pesquisa-nacional-desaude-do-escolar.html. Acesso em: 14 out. 2024.

SINAL de alerta: consumo de álcool no Brasil em alto patamar há mais de uma década.

Observatório de Saúde Pública. 16 fev. 2024. Disponível em: https://biblioteca.observatoriosaudepublica.com.br/blog/consumo-alcool-no-brasil-em-alto-patamar-ha-mais-de10-anos Acesso em: 14 out. 2024.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global Status Report on Alcohol and Health. Geneve:

World Health Organization, 2018. Disponível em:

https://books.google.com.br/books?id=qnOyDwAAQBAJ&lpg=PR7&ots=a2muLJnget&d q=WORLD%20HEALTH%20ORGANIZATION.%20Global%20status%20report%20on%20al cohol%20and%20health.%20Geneva%3A%20World%20Health%20Organization%2C%2 02018.&lr&hl=pt-BR&pg=PR5#v=onepage&q&f=false. Acesso em: 14 out. 2024.

Selene Franco Barreto

Psicóloga Clínica e Consultora de Empresa, Presidente da ABEAD (2023-2025).

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Andreia Amaral

Assessora de Projetos Educativos da Evolução Consultoria.

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