Imagem: Ulisses e as Sereias, por Herbert James Draper
Por Rodrigo Pereira Pio
A mitologia grega está repleta de histórias que refletem as complexidades da condição humana. Entre elas, o mito das sereias de Homero, presente na Odisseia, oferece uma metáfora poderosa para compreender os perigos das tentações que nos afastam do nosso verdadeiro caminho. Da mesma forma, o uso de substâncias pode ser visto como uma sedução que, embora inicialmente atraente, leva a consequências devastadoras.
No épico de Homero, as sereias são criaturas encantadoras cujo canto irresistível atrai os marinheiros para as rochas, resultando em homens jogando-se ao mar ou no naufrágio dos navios. As sereias gregas eram descritas de forma bem diferente das sereias modernas: eram monstros cuja metade superior tinha um formato humano feminino, enquanto a metade inferior tinha o formato de uma ave.
Em uma das narrativas, o herói Odisseu (ou Ulisses), conhecendo o perigo que elas representam, ordena que seus homens tapem os ouvidos com cera para resistirem ao chamado das sereias, enquanto ele mesmo é amarrado ao mastro para ouvir sem sucumbir à tentação.
Essa história simboliza como certas tentações podem parecer atraentes e oferecer uma fuga momentânea das dificuldades, mas, na realidade, conduzem a resultados prejudiciais. As sereias representam aquilo que promete prazer imediato, mas que pode levar à destruição.
Da mesma forma que os marinheiros enfrentavam a tentação de se aproximar das sereias, muitas pessoas, em estados de carência emocional ou vulnerabilidade, são atraídas pelo uso de substâncias como cocaína e álcool. Essas substâncias oferecem uma ilusão de alívio, prazer ou escapismo, mascarando temporariamente as dores e insatisfações internas.
Às vezes conto aos pacientes que a substância tem um único objetivo: fazê-los consumi-la novamente. Para isso, assim como as sereias, ela cantará aos “marinheiros digitais do século XXI” exatamente o que eles querem escutar, contanto que voltem a consumi-la. Mesmo após o preparo do indivíduo e a compreensão do desafio de resistir à sedução da substância, o melhor caminho é sempre o preventivo: não se aproximar muito é a melhor estratégia. Em condições ideais, o trabalho do profissional que lida com adições é preventivo. Dependendo da ocasião, podemos enxergar tais profissionais como um mapa para que marinheiros (pacientes) consigam cumprir seus objetivos e estejam próximos de seus valores, correndo o menor risco possível.
No caso de Odisseu, o herói grego é aconselhado pela feiticeira Circe, que fornece orientações essenciais sobre os perigos que o aguardam. Ela aconselha que Odisseu tape os ouvidos dos marinheiros com cera de abelha para que não escutem o encanto das sereias e diz que, se Odisseu desejar ouvir o canto, ele deve ser amarrado firmemente ao mastro do navio e não ser solto, mesmo que implore pelo contrário. Coloco aqui uma passagem:
“Primeiro, encontrarás as sereias, que encantam todos os homens que por elas passam. Quem, inadvertidamente, se aproxima e ouve a voz das sereias, jamais retorna para casa, pois seu canto sedutor enfeitiça o viajante, que esquece tudo em seu desejo de se aproximar. Elas se sentam em um prado florido, cercadas pelos ossos dos homens que murcharam, com peles ressecadas cobrindo seus esqueletos.”
Com os preparativos feitos, o navio avança em direção às ilhas das sereias. O mar torna-se calmo, e um silêncio sobrenatural envolve a embarcação. Sem poder ouvir, os marinheiros mantêm seus postos, enquanto Odisseu, amarrado, aguarda o encontro iminente. Quando o navio está próximo o suficiente, as sereias percebem a chegada e iniciam seu canto hipnótico. Elas cantam para Odisseu:
“Vem cá, famoso Odisseu, grande glória dos aqueus! Detém teu navio para que possamos ouvir tua voz. Nenhum homem jamais passou por aqui em seu navio sem ouvir a doce melodia que flui de nossos lábios. Venha e saiba mais, pois sabemos tudo o que aconteceu na planície de Troia, onde os aqueus e os troianos lutaram, e conhecemos todas as coisas que ocorrem sobre a terra fértil.”
Ao ouvir o canto das sereias, Odisseu é tomado por um desejo intenso de se libertar e ir ao encontro delas. Começa a se debater, fazendo gestos desesperados para que seus homens o soltem. Ele tenta gritar ordens, mas seus marinheiros, com os ouvidos tapados, não podem ouvi-lo. Observando o comportamento agitado de Odisseu, os marinheiros compreendem que ele está sob o encanto das sereias. Lembrando-se de suas instruções, eles se aproximam e apertam ainda mais as cordas que o prendem ao mastro.
Apesar de pequenos, existem detalhes nessa história que nos fazem refletir sobre alguns dilemas que enfrentamos diariamente. Comparo a estratégia de não se aproximar muito da ilha com a prevenção de recaídas, onde focamos em elaborar estratégias que impeçam os pacientes de se aproximarem de situações de risco. Odisseu preparou sua viagem desde o começo e aceitou conselhos que muitos ignoram. Destaco ainda que, mesmo um herói como Odisseu, que já havia provado seu valor em diferentes situações, aceitou sua vulnerabilidade e ordenou que o amarrassem ao mastro do navio, situação que poderia ser, no mínimo, embaraçosa para um herói. Talvez pudéssemos utilizar o exemplo de Odisseu para mostrar aos pacientes que precisamos reconhecer nossa vulnerabilidade diante da substância, assim como está escrito no primeiro passo do Alcoólicos Anônimos: “Admitimos que somos impotentes perante o álcool”.
As sereias (e as substâncias) seduzem, prometendo às pessoas todos os prazeres e conquistas do mundo, deleitando qualquer indivíduo com o que mais deseja escutar. Mesmo que o indivíduo possa enxergar os esqueletos daqueles que sucumbiram aos seus encantos, pode ignorar todos os perigos e se jogar ao mar. Por fim, Odisseu aceitou o perigo e recorreu a ser amarrado ao mastro. Como profissional do ramo de adições, em alguns casos, também preciso recorrer a medidas mais diretivas quando reconheço que o risco é muito alto, organizando internações ou outras ações que protejam o paciente. Em algumas ocasiões, precisamos sustentar uma internação com a colaboração dos familiares, mesmo que o paciente reforce o contrário, especialmente em momentos de fissura ou impulsividade, assim como Odisseu fez ao escutar o canto sedutor. Esses momentos podem ser desafiadores para a equipe assistencial, pois é nesse instante que a fala do próprio paciente pode indicar que a situação já está controlada e que não há mais necessidade de cautela, assim como foi para os marinheiros do navio. Os marinheiros de Odisseu demonstraram grande lealdade e compromisso, seguindo suas instruções mesmo quando ele aparentava estar em conflito, demonstrando sensatez apesar das súplicas.
Concluo, então, que não é uma casualidade que a narrativa grega tenha colocado as tentações logo no momento mais vulnerável do ser humano, em longas e exaustivas viagens marítimas. Assim como ocorreu com Odisseu, as recaídas ocorrem sempre nos momentos mais desafiadores, quando as pessoas interpretam que os vínculos estão sob ameaça ou em momentos específicos, não aleatoriamente. Tampouco foi uma casualidade que Freud tenha se inspirado em várias narrativas mitológicas gregas para nomear os conflitos mentais presentes no inconsciente. A mitologia deixa claro que, apesar do passar de milênios, os seres humanos enfrentam os mesmos desafios, em proporções e contextos diferentes.
HOMERO. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Canto XII, versos 39-54.
Rodrigo Pereira Pio
Médico Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria de Adição pelo Programa de Residência Médica (HCPA/RS).