A Comunidade Terapêutica e o Homo Vinculum: o elo transformador para o florescimento de capacidades humanas, favorecendo a cultura da recuperação a longo prazo.

Por Dr. Nino Cesar Marchi

Background

As Comunidades Terapêuticas (CTs) são um método amplamente utilizado para a reabilitação de usuários de drogas nos Estados Unidos e na Europa. No cenário nacional tem se alastrado por todo país, desde seu surgimento em meados dos anos 60. Embora ainda seja um assunto controverso no Brasil, as CTs possuem uma estrutura terapêutica eficaz para os distúrbios relacionados a substâncias, e oferecem tratamentos baseados em abordagens residenciais, tanto urbanas como rurais de médio e longo prazo. No entanto, devido à escassez de recursos para pesquisas de ponta em nosso país — como estudos de seguimento (follow up, na sigla em inglês), ainda não se tem certeza sobre o alcance e a eficácia das intervenções realizadas e os benefícios deste formato de tratamento, incluindo uma vida e convívio pelos pares em comunidade. Contudo, os resultados empíricos, obtidos em bons centros de tratamento e recuperação oferecem esperança sobre esse recurso terapêutico (De Leon G, Unterrainer HF, 2020).

Atualmente, o modelo adotado no Brasil é o aumento formal de uma equipe multiprofissional, semelhante o que ocorre em outras CTs na América Latina, por exemplo. Apesar de poucas Cts em nosso país conseguirem, na prática, organizar a equipe e o fluxo de atendimentos, essa realidade é existente e não se pode negar. No que tange ao modelo de tratamento, a principal meta das ações terapêuticas permanece sendo promover a recuperação através da criação de ambientes terapêuticos que apoiem a mudança comportamental, o desenvolvimento pessoal e a reintegração social. As características comuns dessas comunidades incluem a participação ativa dos membros em tratamento na tomada de decisões, o apoio mútuo e a ênfase na responsabilidade pessoal (Restrepo et al., 2018).

Considerando a situação atual e os enormes problemas que estas Organizações enfrentam em nosso país, como o maus tratos em algumas CTs e veiculadas as mídias; a falta de recursos financeiros; as dificuldades para repassar recursos de governos, muitas vezes com pautas partidárias, a falta de treinamento adequado para todos os membros que trabalham nesses locais — desde consultores em dependência química (profissional em recuperação que compõe uma equipe multiprofissional); até os próprios profissionais da área de saúda que podem carregar nas suas práticas, vieses políticos partidários e o formato hierárquico (De Leon G, Unterrainer HF, 2020).

Outro ponto crucial é a falta de recursos e instalações adequadas para acolher de forma hospitaleira e digna os pacientes que ali residirão por algum tempo. Esses são os problemas mais frequentes, e diversas CTs operam com essa situação precária, oferecendo um serviço insuficiente para o dependente químico e seus familiares (Restrepo et al., 2018).

Contudo, existem diversas outras CTs de excelência que conseguem superar essas barreiras, assumindo uma postura ética, dedicando-se a contratar e treinar com afinco sua equipe, como supervisionar e capacitar através de cursos os profissionais da equipe, mentorias e revisões do seu próprio protocolo de atendimento. Dessa forma, algumas Instituições e Federações em nosso país, assim como organismos internacionais, fazem esse comovente e efetivo trabalho de acompanhar estes locais de tratamento (Restrepo et al., 2018).

No que tange ao tratamento adequado e considerado efetivo, consiste em um plano terapêutico bem estruturado e individualizado para incentivar o paciente a adesão ao programa de tratamento, atender às necessidades individuais deles e auxiliar para promover internamente e no ambiente da CT a cultura de recuperação. Um desafio adicional que as CTs de excelência enfrentam é o perfil atual do usuário de drogas, que geralmente são indivíduos imersos em tecnologias e novas realidades digitais, o que pode resultar em compulsões sexuais e consumo problemático de pornografia on-line, por exemplo. O consumo de novas drogas além das usuais, abuso de medicamentos também compõe esse perfil novo de paciente e que muitas vezes necessita de uma avaliação médica adequada e especializada em Transtorno por uso de Substâncias (TUS), demandando ainda mais o cenário atual que as CTs precisam lidar. No entanto, existe ainda uma população que busca esses serviços, necessitando esse olhar para esta complexidade, porém apresentam uma certa avidez por relacionamentos e vínculos duradouros, nos fazendo pensar do ambiente da CT como local ideal para essa demanda. Nesse sentindo, existem inúmeras literaturas bem consagradas abordando nesse sentindo e discorrendo sobre a importância da relação duradoura, segura e protetiva para os indivíduos, como a teoria do apego sugere, documentada por John Bowlby (1907-1990) que foi um psicólogo e psicanalista britânico, conhecido por suas contribuições significativas neste campo. Nela o estudioso demonstra que só podemos aproveitar o nosso ambiente de forma otimizada quando nos sentimos seguros e protegidos por uma figura de apego. Portanto, no ambiente de uma CT que preza por harmonia, bons relacionamentos e um tratamento efetivo que nela poderá conduzir esses indivíduos, tanto os pacientes quanto equipe e seus funcionários para uma atmosfera de colaboração mútua.  Neste caso, estamos mencionando uma das grandes vocações dos seres humanos, o Homo Vinculum – aquele que se relaciona com os outros, conforme a visão da psicóloga clínica e investigadora científica, Sue Johnson (2023) e que motivou usar esse conceito no presente artigo.

A Comunidade Terapêutica como método e terreno para vínculos e cuidados

No centro da modalidade de CT está o equilíbrio cuidadoso de dois elementos complementares, mas que são opostos. A CT, em primeiro lugar, é caracterizada pelo uso da comunidade para a criação de um ambiente cotidiano que tem como objetivo auxiliar na recuperação e no aprendizado. De Leon (1997) observa:

“O que distingue a CT de outras abordagens de tratamento e de outras comunidades é o uso intencional da comunidade de colegas para facilitar a mudança social e psicológica nos indivíduos” (p. 5).

Dessa forma, a rotina e a estrutura diária são controladas de forma a assegurar que cada membro da comunidade receba os desafios e recompensas adequados e relevantes. A existência de um ambiente terapêutico não é necessariamente sinônimo de um ambiente de apoio, embora os desafios sejam estabelecidos em uma comunidade onde cada indivíduo se sinta seguro e protegido. A justaposição cuidadosa de dois elementos opostos é o que determina o êxito inicial das CTs. É notório que o equilíbrio entre uma estrutura de retenção e apoio, bem como o fornecimento de um refúgio seguro para explorar e compartilhar experiências de vulnerabilidade pessoal, é uma característica crucial para as intervenções direcionadas à recuperação em geral (Best et al., 2010; Jason, Ferrari, Davis e Olson, 2006; White, 2008).

As CTs internacionais são um meio termo entre os programas de ajuda mútua e o tratamento “clínico” tradicional. Os elementos de apoio dos colegas e de modelagem de papéis das irmandades de ajuda mútua são fundamentais para o processo da CT e muitas conseguem reproduzir esse sistema fidedignamente.

A recompensa e as consequências da hierarquia de residentes são, em muitos aspetos, similares – e usadas de maneira idêntica – aos 12 passos. Os principais diferenciais do modelo de CT são a intensidade da intervenção e o uso de desafios e confrontos para identificar comportamentos e atitudes inaceitáveis. De Leon (2010) e outros (Jasonet al., 2006; McKeganey, Bloor, Robertson, Neale, & MacDougall, 2006) argumentaram que alguns usuários de drogas com problemas graves de dependência exigirão a intensidade de uma intervenção baseada em residência. Embora a utilização da confrontação seja questionada por White e Miller (2007), De Leon (2000) sustenta que ela é indispensável para o processo de recuperação. Dessa forma, Jason e seus colegas relataram um estudo de 15 anos sobre o movimento Oxford House. Eles constataram que a utilização da confrontação e do desafio foram amplamente benéficos para a manutenção da recuperação.

As CTs têm sido frequentemente criticadas por uma alta taxa de desistência, especialmente nos primeiros meses de tratamento, especificamente nas primeiras 12 semanas. Entretanto, esse não é um problema específico das CTs. Outros investigadores científicos em seus trabalhos, bem documentados e publicados, incluindo revisões da literatura, apresentam algumas evidências sobre a retenção e a adesão ao tratamento de uma série de transtornos mentais e outras doenças crônicas que exigem intervenções de longo prazo (incluindo diabetes, hipertensão, asma, etc.), estimaram a retenção do tratamento em aproximadamente 50%, e vários autores (McLellan, Lewis, O’Brien e Kleber, 2000; O’Brien e McLellan, 1996; White, 2008) argumentaram que os transtornos por uso de substâncias não só exigem um tratamento focado no longo prazo, como também apresentam taxas de desistência semelhantes.

Apesar de haver um grande progresso em termos de evidências para diversos tipos de intervenções de tratamento em adições, o campo permanece bastante permeável ao que não sabemos. A maioria das evidências, em termos sucintas, indica que o tratamento funciona, mas pouco se sabe a respeito. Assim sendo, talvez não seja tão surpreendente que muitas escolhas de planos de tratamento sejam, na realidade, fundamentadas mais em crenças e suposições pessoais do que em evidências científicas ((De Leon, Melnick e Cleland, 2008).

Tradicionalmente, a reabilitação residencial em geral, e as CTs em particular, têm sido vistas como intervenções eficazes, mas adequadas apenas para uma minoria de pacientes cuja incapacidade de cumprir os requisitos de outros tratamentos considerados menos dispendiosos. Como resultado, as CTs geralmente atendem a um grupo de pacientes significativamente mais prejudicado (De Leon, Melnick e Cleland, 2008; Gossop, Marsden, Stewart e Treacy, 2002; Holt, Ritter, Swann e Pahoki, 2002; Yates, 2008) do que as populações correspondentes em modalidades de tratamento não residencial. Têm níveis mais elevados de problemas de saúde mental (Yates, 2008), usam uma variedade maior de substâncias com mais frequência (Pitts & Yates, 2010; Yates 2008) e são usuários mais persistentes de uma grande variedade de serviços de tratamento (DeLeon et al., 2008; Gossop et al., 2002) Embora essas constatações não sejam particularmente surpreendentes, é perceptível que há diferenças significativas entre as amostras, com todas as consequências decorrentes para o prognóstico.

Após um século de pesquisa de resultados com base em evidências empíricas, foi constatado que a recuperação através de CTs e outras medidas apoiadas por colegas é não apenas viável, mas também cientificamente comprovada (Best et al., 2010; De Leon, 2010; White, 2008). Enquanto o movimento de recuperação continuar a se distrair com a questão (já respondida) de se essas intervenções funcionam, as perguntas sobre como elas funcionam e para quem elas funcionam melhor permanecerão sem resposta.

Principais Componentes das CTs no Brasil:

Abordagem Residencial: As comunidades terapêuticas são geralmente baseadas em ambientes residenciais, onde os participantes vivem e participam de atividades terapêuticas diárias.

Terapia de Grupo: A terapia de grupo é uma parte fundamental, proporcionando um ambiente de apoio onde os membros compartilham experiências, aprendem habilidades sociais e recebem feedback construtivo.

Responsabilidade e Autonomia: A ênfase é colocada na responsabilidade individual, incentivando os participantes a assumirem responsabilidade por suas ações e escolhas.

Reintegração Social: As comunidades terapêuticas visam preparar os participantes para uma reintegração bem-sucedida na sociedade após o tratamento.

Conclusão

Dado que Sue Johnson analisou o conceito de Homo Vinculum, juntamente com a aplicação prática em comunidades terapêuticas que trabalham com o tratamento do transtorno por uso de substâncias, e através da revisão da literatura e análise teórica surge uma compreensão profunda da relevância da conexão humana na cultura da recuperação a longo prazo. Esta síntese demonstra a relevância de reconhecer e manter os laços emocionais e sociais como elementos fundamentais para a recuperação, especialmente nos casos complexos em TUS. Ao fortalecer essas relações durante o tratamento, as comunidades terapêuticas podem oferecer um ambiente propício para o crescimento pessoal e a transformação positiva, promovendo assim a sustentabilidade da recuperação a longo prazo para aqueles que lutam contra a difícil tarefa no campo das adições.

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Dr. Nino Cesar Marchi

Psicólogo (PUCRS); Especialista Dep. Química (Unifesp); PhD Student Psychiatry (UFRGS); Diretor de Serviços da Família.

@ninocmarchi

 

 

 

 

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