Por Alessandra Mendes Calixto, enfermeira Ph.D. em enfermagem e Lucas França Garcia, sociólogo Ph.D. em ciências médicas.

Os Alcoólicos Anônimos são um presente para humanidade pelo seu empenho ético, vamos explicar porquê. No dia 10 de junho de 1935 foi formado em Nova York um grupo de ajuda mútua para alcoólicos que preservava o anonimato, acolhia indistintamente e dava espaço de fala a pessoas em sofrimento emocional, marcadas por perdas irreparáveis e traumas.

É sabido que o consumo de álcool afeta a saúde de forma global. Na dimensão social e emocional pode afetar a autonomia, o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, o senso de segurança das pessoas e suas famílias. Ter um espaço para partilhar e dialogar sobre recuperação também é tornar consciente a importância da vida, conectar-se aos outros em fraternidade, encontrar a dignidade para enfrentar estigmas sociais e buscar a autopreservação dessa irmandade.

Na ética1, o conceito de irmandade enfatiza a igualdade intrínseca entre todos os seres. Ela nos lembra que não importa nossa raça, religião, gênero ou origem social, todos merecem ser tratados de forma e ter seus direitos respeitados. Através da irmandade ética, somos incentivados a reconhecer o valor inerente das outras pessoas e agir em conformidade com isso.

Na moral laica2, o conceito de irmandade atua na responsabilidade mútua que temos uns pelos outros. Isso significa que devemos ir em prol do bem-estar coletivo e não apenas individualmente. Atuar para o bem-estar dos outros, já que é igualmente importante ao nosso próprio bem-estar, somos levados a tomar decisões morais mais conscientes e altruístas. O senso de irmandade também ajuda a promover uma cultura de cooperação ao invés de competição excessiva.

O conceito de irmandade desempenha um papel fundamental na formação laica porque nos lembra constantemente da importância do respeito mútuo, igualdade e responsabilidade compartilhada aos e pelos outros seres humanos.

O AA oferece um ambiente protegido para seus membros, com o anonimato, a liberdade de aderir às sugestões, recomendações do grupo e a sensação de pertencimento. Segundo o sociólogo Axel Honneth3, o reconhecimento social é fundamental para a formação do sujeito, sua identidade e a internalização de comportamentos sociais.

Nesse sentido, o sigilo e confidencialidade são pilares éticos fundamentais no programa do AA, garantindo o acolhimento respeitoso para seus membros. Esses princípios permitem que os participantes partilhem suas experiências sem julgamento, criando uma base de confiança essencial para o processo de recuperação.

O compromisso com o sigilo protege a privacidade dos membros e também a dignidade. O anonimato encoraja mais pessoas a buscar ajuda e evita repercussões pessoais ou profissionais. A confidencialidade se dá por um acordo tácito, implícito de confiança e verbal, há o crescer de uma autoconfiança e credibilidade sendo restaurada pouco a pouco. Este compromisso fortalece e promove a adesão ao contrato de apoio mútuo.

Os princípios éticos acima apresentados reforçam a coesão do grupo e a eficácia do programa, que traz um discurso de igualdade e identificação. As normas claras e simples favorecem a compreensão, o engajamento, de tal forma que resulta na repercussão de bons comportamentos. As conquistas daqueles em recuperação, contribui significativamente para a transformação emocional de pessoas, instila a esperança, é reconhecido todo e qualquer progresso.

Para o sociólogo Axel Honneth3, a sociedade traz uma perspectiva de experiências de reconhecimento social, explica que a pessoa individualmente aspira ser membro em diferentes modelos de grupos sociais, ter uma identidade e papel social. O AA promove esse lugar de pertencimento e reconhecimento, sendo um mecanismo social fundado na necessidade ou no interesse psíquico da pessoa que o auxilia na ampliação do seu círculo de apoio social.

Segundo Honneth3 um grupo em geral se sustenta por normas e tradições, impactando na mudança e adaptando-se historicamente, desenvolvendo uma cultura perene por engajamento dos seus membros assim como um aprendizado transgeracional familiar. Diz ter convicção de que a formação da pessoa se realiza através da gradual internalização de um comportamento social que tem caráter de reconhecimento intersubjetivo. No texto “O eu no nós: reconhecimento como força motriz de grupos” Honneth3, fala dos estágios de configuração da autonomia por meio do reconhecimento pelo grupo. Seriam eles: a autor relação positiva – autoconfiança estabelecida pelo comportamento cuidadoso e estável da pessoa de referência primária; o autorrespeito a partir da experimentação dos limites de segurança e conquistas, onde a capacidade de fazer julgamentos é percebida confiável; e, autoestima quando a pessoa já tem consciência das suas habilidades de se relacionar naquele contexto.

O grupo de mútua ajuda (irmandade) promove a modelagem de comportamentos essenciais para manutenção da mudança desejada, do autocontrole, autorregulação, autogerenciamento das experiências, relações de apoio, uma nova forma de socialização. E o processo de mudança por passos é o principal arcabouço.

Na teoria da estruturação, desenvolvida por Anthony Giddens4, a experiência grupal além de estar diretamente relacionada com as identidades sociais, pode ser compreendida como contínua, na medida em que as nossas ideias e o nosso comportamento são continuamente influenciados pelos relacionamentos sociais e pelo ambiente em que vivemos.

É por meio da socialização que aprendemos e incorporamos hábitos, costumes, valores, normas/regras de nossa sociedade e comunidade. Desde o nascimento até a vida adulta, estamos continuamente aprendendo comportamentos, formas de interagir em diversos e novos ambientes. Nos identificamos, modificamos ao atingirmos diferentes estágios de desenvolvimento e ao assumirmos papéis sociais diversos que se alternam e multiplicam ao longo da vida 4. Por isso, estar conectado a um grupo pode ser a possibilidade de reeditar experiências, de experimentar outras formas de relações sociais, por vezes ampliando as experiências familiares.

A cooperação (serviço em AA) é um dos pilares nas relações sociais, pois implica a existência de normas que orientam a ação do grupo, mesmo que haja rivalidade, mas este não interfira na cooperação. Ainda sobre a vida em grupo Giddens4 pontua que todo grupo tem sua cultura, “conjunto de capacidades adquiridas”. Uma sociedade possui elementos suficientemente diversificados para atender as exigências de sobrevivência do grupo em todos os aspectos de vida social.  O grupo social se forma voluntariamente e mantêm relações de reciprocidade.

A estrutura baseada em regras, princípios e tradições atuam como estruturas reguladoras. As regras sociais sempre estão relacionadas ao coletivo, podendo sustentar práticas e comportamentos. Partem do coletivo e dão vazão a um desejo coletivo. As regras subentendem “procedimentos metódicos” de interação social regulado pelo grupo e sustentado por ele. As regras relacionam-se com a constituição de significado e, por outro lado, com o sancionamento dos modos de conduta, a reação contraria a regra deve servir para mudanças estruturais, arranjos e adequações.  A quebra da regra é subjetividade e nem sempre fere o coletivo porque pode corresponder ao coletivo4 como no caso da recaída.

Outro aspecto fundamental dos Alcoólicos Anônimos é o combate aos estigmas sociais relacionados ao alcoolismo. Ao proporcionar um espaço aberto e acolhedor para todos aqueles que lutam contra a dependência do álcool, o grupo desafia preconceitos arraigados na sociedade. Essa postura ética contribui para uma mudança de mentalidade coletiva, promovendo uma maior compreensão sobre o problema do alcoolismo. As pessoas são capazes não só de monitorar suas próprias atividades e as de outros na regularidade da conduta, mas também monitorar essa consciência discursiva, o que Giddens4 chama de monitoração reflexiva das ações. A estruturação social, segundo Giddens4, é sustentada por regras que orientam a ação coletiva e possibilitam mudanças e adaptações necessárias. A responsabilidade individual pelas próprias atividades é essencial para justificar as ações, bem como manter a coesão do grupo.

Em suma, os Alcoólicos Anônimos são um presente para humanidade pelo seu comprometimento ético com a igualdade entre todos os seres humanos. Através da irmandade baseada no anonimato e na solidariedade mútua, eles oferecem suporte emocional essencial para aqueles que lutam contra a dependência do álcool. Mais do que isso, eles ajudam a construir uma cultura de respeito e aceitação às pessoas afetadas por essa doença complexa.

No mês de junho, comemoramos o 89º aniversário dos Alcoólicos Anônimos, celebrando décadas de dedicação à recuperação de milhares de pessoas. Agradecemos, enquanto profissionais da saúde, a todos os membros que mantêm viva a missão e os princípios deste movimento tão importante para a sociedade como um todo.

Referências:

  1. GOLDIM, José Roberto. homepage: https://www.ufrgs.br/bioetica
  2. ROHLING, M.. (2017). Durkheim, Rawls e a educação moral. Revista Brasileira De Educação, 22(71), e227162. https://doi.org/10.1590/S1413-24782017227162
  3. HONNETH , Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais / Axel Honneth; traducáo de Luiz Repa. – Sao Paulo: Ed. 34, 2003
  4. SILVA, F. R. R. da .. (2014). Entre a epistemologia e a ontologia: a teoria da estruturação de Anthony Giddens. Tempo Social, 26(2), 123–136. https://doi.org/10.1590/S0103-20702014000200008

Alessandra Mendes Calixto, enfermeira Ph.D. em enfermagem. @alemendescalixto

Atua como Conselheira em Dependência Química no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. 2° Vice Presidente da ABEAD. Doutora em Enfermagem pela UFRGS. Mestre em Ensino na Saúde pela UFRGS. Especialista em Dependência Química pela UFSCPA. Especialista em Saúde Mental pela UFRGS.

 

 

 

Lucas França Garcia, sociólogo Ph.D. em ciências médicas. @prof.lucas.garcia

Cientista Social, Bioeticista, Mestre (2013) e Doutor (2017) em Ciências Médicas e Bioética pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador visitante no Departamento de Ética Médica e Políticas de Saúde (Department of Medical Ethics and Health Policy) da University of Pennsylvania (Penn) no período de 2015-2016 pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE/CAPES). Atualmente é Professor Permanente do PPG em Promoção da Saúde e Professor de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Cesumar de Maringá (UniCesumar), bem como Vice-Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da mesma IES. É líder do Grupo de Pesquisa em “Bioética e Promoção da Saúde Global no envelhecimento”. É Pesquisador Associado do Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência do Centro de Pesquisas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre-LAPEBEC/HCPA.

Leave a Reply