Por Guilherme Athayde Ribeiro Franco (*)

“Cadê meu Juul?” [Adolescente no Tik Tok. “Juul” é conhecida marca/modelo de cigarro eletrônico nos EUA.]

“Vape não é cigarro (…) Nós somos contra os cigarros.” [Juul]

“O coquetel Molotov dos cigarros.” [Robert Proctor, Stanford]

“Uma sofisticada forma de prisão”. [Katherine – mãe de jovem vaper, 20 anos, nos EUA.]

“… não sinto que devo parar; por enquanto faz parte do meu estilo de vida.” [Jovem americana, 24 anos – vaper.]

“Lobo em pele de cordeiro.” [Doutora Cheryl Healton, Universidade de Nova Iorque]

“Você é um mercador de veneno com alvo nos jovens.” [Deputado Mark DeSaulnier – House of Representatives – dirigindo-se a James Monsees, um dos criadores do cigarro eletrônico Juul]

“85% dos adolescentes preferem cigarros eletrônicos saborizados.” [Matthew Myers – Presidente do movimento Tobbaco Free Kids]

“A diferença entre os cigarros eletrônicos e os convencionais é como pular do 15º andar ou do 50º andar.” [Stanton Glantz, Universidade da Califórnia, São Francisco – UCSF]

A longa epígrafe é um apanhado de frases extraídas do documentário Big Vape, em cartaz na Netflix.

Tem como pano de fundo a história da startup californiana Juul Labs, que, neste quartel de século, lucrou de modo estratosférico com seus “descolados” dispositivos eletrônicos para fumar, ou “vapes” – como preferiram denominar, dando a falsa impressão que seriam apenas uma micro chaleira hightech.

Juul tem hoje como uma das sócias a fabricante do famoso cigarro que leva os homens se encontrarem na terra do pé-junto.

E vai colecionando processos judiciais por diversos estados norteamericanos. Só em acordos, pagou até este ano a cifra de dois bilhões de dólares – segundo o documentário.

O documentário, permita-se uma modesta percepção, tenta ainda de modo subliminar vender a ideia de que ajustes tecnológicos no cigarro eletrônico iria torná-lo a pen drive da felicidade. Nada mais enganoso para uma geringonça movida a metais pesados, amônia, propilenoglicol e outros aditivos químicos cancerígenos.

Mas e no país tropical que ainda têm um ramo de tabaco no brasão de armas?

Vivemos há alguns anos uma guerra no modo silencioso com munições dos lobistas, proponentes da legalização dessa “arma química” – expressão não menos contundente dita pelo médico oncologista Fernando Maluf, em um “Roda Viva” da TV Cultura.

Arma que pode ser utilizada para consumo de qualquer droga [mesmo!], a causar,, além de câncer, dependência e lesões pulmonares irreversíveis como a EVALI. E que mata por tabela os “fumantes passivos” – incluindo aqui os bebezinhos em gestação.

Sem contar o estrago no meio ambiente em razão do descarte das baterias e demais peças desse novo lixo eletrônico e altamente tóxico.

A legalização do Big Vape, com Big Tobacco e Big THC [Cannabis] na bagagem [e-juice ou e-liquid], será por igual, um prêmio sem precedentes à criminalidade organizada internacional.

Um futuro de densa fumaça: com ou sem CNPJ; com ou sem CPF na nota; com intensa e contínua sangria no Sistema Único de Saúde.

Jamais haverá impostos o suficiente para bancar essa conta de Mamon [que já não fecha com o Big Tobacco e um outro velho conhecido, o Big Alcohol].

Nunca chegamos tão perto de institucionalizar a mentira com cor, cheiro e sabor de morango, manga ou baunilha. E a esconder insidiosamente o fétido odor da morte que teremos nas presentes e futuras gerações.

A propósito – qual o valor de uma única vida? O narcocapitalismo dobrará ao menos os sinos por suas vítimas ou as colocará na vala comum do esquecimento, como sempre o fez?

Afinal, é só uma questão de “repor estoque de consumidores”.

Que o Pneuma oriente nossos congressistas e as demais autoridades de qualquer dos poderes ou funções da República.

E nos dê coragem para a imprescindível defesa do direito fundamental à saúde respiratória de nossas crianças, adolescentes e dos jovens.

Qualquer afrouxamento na Política Nacional de Controle do Tabaco [que engloba fumígenos em geral, derivados ou não do tabaco] afronta a Constituição da República e seus princípios, tais quais: do não-retrocesso; da vulnerabilidade presumida do consumidor; da vedação aos danos, agravos e riscos à saúde da população, ainda que potenciais; da precaução; da proteção integral a crianças e adolescentes; da prevenção especial extensiva aos jovens – em matéria de substâncias causadoras de dependência; dentre outros análogos princípios.

Fomos um dos primeiros signatários da Convenção Quadro de Controle do Tabaco [CQCT]. O primeiro tratado internacional de Saúde Pública.

Cumprindo adequadamente a CQCT, a Anvisa editou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 46/2009 acerca dos dispositivos eletrônicos para fumar – proibindo-os em todo o território nacional.

Os que circulam nas baladas são todos oriundos de contrabando ou do tráfico de drogas [se os dispositivos estiverem carregados com substâncias proscritas como o THC, cocaína, drogas sintéticas, opioides, etc…].

Quem os comercializa tem a plena convicção de que alimenta mais um ramo do crime organizado – com design de apontador, joaninha, marca-texto ou pen-drive.

Enfim, encerrada a Semana da Criança – com a notícia de uma garota norte-irlandesa, gravemente enferma e hospitalizada por causa do uso de vapes, dos 9 aos 12 anos!

De se indagar, com o costumeiro respeito: por que se calar a Anvisa, por que ignorar a Ciência, por que abrir as comportas para a inundação do Big Lobby – e além do mais favorecer ao mesmo tempo as organizações criminosas?

(*) 30º. Promotor de Justiça de Campinas. Especialista em Dependência Química. (UNIAD/UNIFESP). Associado da ABEAD – Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas.

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