Por Selene Franco Barreto¹ e Andreia Amaral²

A abolição da escravatura no Brasil, que ocorreu em 13 de maio de 1888, foi um marco histórico que pôs fim a uma das instituições mais desumanas já conhecidas. Embora seja uma data a ser celebrada, é importante reconhecer que a liberdade conquistada foi tardia e deixou um legado de desigualdade e marginalização que ressoa até hoje.

A liberdade foi uma conquista que não contou com os recursos necessários para a integração da população negra na sociedade como cidadã. Essa herança histórica deixou cicatrizes profundas na comunidade negra, que ainda enfrenta desigualdades estruturais em áreas como educação, acesso a emprego, saúde e segurança.

A falta de oportunidades, a marginalização e a ausência de políticas de inclusão social colocaram esses indivíduos em situações de vulnerabilidade, presos em um ciclo de pobreza e discriminação que perpetuou a marginalização de suas comunidades e os tornou mais suscetíveis ao uso e abuso de álcool e outras substâncias químicas como forma de escape.

No contexto do trabalho com pessoas que têm problemas com uso nocivo de álcool e outras drogas, a herança da escravidão também se reflete nas disparidades sociais e de saúde enfrentadas pela população negra. Alguns estudos mostram que negros têm maior probabilidade de viver em áreas com poucos recursos, enfrentar desemprego e ter acesso limitado a serviços de saúde de qualidade – e ainda enfrentam obstáculos adicionais ao buscarem profissionais sensíveis às suas necessidades mais específicas e especializados para orientação, prevenção e tratamento. Esses fatores contribuem para uma maior incidência de problemas de saúde mental e dependência química entre os afrodescendentes.

Além disso, a própria indústria das drogas tem sido historicamente associada a padrões de discriminação racial, desde políticas de criminalização seletiva até o direcionamento de marketing agressivo para comunidades marginalizadas. O estigma racial também influencia a maneira como os dependentes químicos são tratados pela sociedade e pelos sistemas de justiça, muitas vezes perpetuando um ciclo de marginalização e punição, em vez de oferecer suporte e tratamento adequados.

Ao abordar esse tema, é fundamental reconhecer não apenas as interseções entre a escravidão e a dependência química, mas também a necessidade de políticas e práticas que tratem das raízes profundas dessas questões. Isso inclui o combate ao racismo estrutural, a promoção da equidade racial em todos os níveis da sociedade, a implementação de políticas e programas de saúde que levem em consideração as necessidades específicas da população negra, incluindo a capacitação de profissionais de saúde em competência cultural, a criação de ambientes de tratamento acolhedores e inclusivos e o investimento em programas de prevenção e tratamento acessíveis e sensíveis do ponto de vista das identidades.

Apesar de alguns estudos ajudarem a compreender a vulnerabilidade da população negra e nos mostrarem que o adoecimento dessa população está diretamente ligado a questões sociais, e não apenas biológicas, muitas pesquisas ainda não têm o recorte de cor e raça, porque esses quesitos não são registrados nos dispositivos de saúde de forma satisfatória, invisibilizando o problema e interferindo nos dados que ajudariam a mapear melhor as condições. Somente por meio de um esforço coletivo e quebra de paradigmas para enfrentar as disparidades estruturais e promover a igualdade de acesso aos cuidados de saúde poderemos, verdadeiramente, abordar os desafios enfrentados pela população negra em relação aos Problemas Relacionados ao Álcool e outras Drogas (PRADs).

O trabalhador da saúde é um profissional que lida, sobretudo, com o cuidado. E para cuidar é necessário poder se colocar no lugar do outro. Mas como isso é possível, quando o outro não é visto e reconhecido? Então, que neste dia 13 de maio possamos refletir sobre como ainda temos grande parte da nossa sociedade aprisionada em conceitos construídos com base no racismo e na desigualdade. Os profissionais da saúde são agentes de mudança essenciais para uma sociedade mais justa e democrática. Essa é a verdadeira essência da liberdade nos dias de hoje – uma liberdade que só pode ser alcançada quando todos são livres para viverem suas vidas com dignidade e respeito.

Referências:

Associação Brasileira de Estudos em Álcool e outras Drogas (ABEAD). Dependência química: racismo, gênero, determinantes sociais e direitos humanos. São Paulo: Appris Editora, 2023.

MAGNO, P. C.; PASSOS, R. G. (org.). Direitos humanos, saúde mental e racismo: diálogos à luz do pensamento de Frantz Fanon. Rio de Janeiro: Defensoria do Estado do Rio de Janeiro, 2020.

¹Selene Franco Barreto (Na imagem)

Psicóloga Clínica e Consultora de Empresa, Presidente da ABEAD (2023-2025).

@barreto_selene

²Andreia Amaral – Assessora de Projetos Educativos e Consultora.

 

One Comment

  • Adriana de Oliveira Costa disse:

    Parabéns pelo texto profundo e esclarecedor!! Somos todos da raça humana!! Esperamos que um dia essa compreensão seja parte da educação e da formação de uma sociedade justa e democrática.

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