Por Alessandra Diehl
O aprimoramento cognitivo farmacológico ou também popularmente conhecido como “ doping do bem” deveria ser um tópico de maior interesse para conscientização pública e de médicos e outros profissionais da saúde que podem ser buscados como um “Doctor Shopping” , ou seja, por pacientes que buscam prescrições de substâncias controladas de vários fornecedores com a intenção presumida de obter esses medicamentos para uso não médico e/ou desvio não médico.
O uso e o abuso de várias substâncias lícitas, tais como opioides, z-compostos, benzodiazepínicos, cafeína, energéticos e anfetaminas prescritas, tem aumentado significativamente nas últimas décadas e as preocupações com este aumento também têm se refletido no impacto deste uso e abuso na saúde do trabalhador. O abuso de medicamentos prescritos afeta em vários níveis tanto a sociedade, quanto o indivíduo e, portanto, potencialmente, o local de trabalho destes usuários que fazem o chamado “dopping do bem” pode ser afetado também.
Medicamentos opioides, z-compostos e benzodiazepínicos, por exemplo, podem ser um fator de risco individual para lesões, traumas e quedas ter como consequência uma maior exposição destas no local de trabalho. Assim como, despontam também preocupações do potencial das bebidas energéticas com taurina afetarem negativamente a saúde mental e o impacto deste prejuízo do trabalho, particularmente nos consumidores jovens, aos quais estes produtos são mais comumente dirigidos. Os produtos são frequentemente comercializados com declarações de aumento da energia mental e física, proporcionando um impulso de curto prazo ao humor e ao desempenho muitas vezes desejado por muitos no ambiente laboral.
A cafeína é outra substância licita consumida por mais de 80% dos adultos em muitos países ao redor do mundo cujos efeitos também são buscados para melhora da função cognitiva e física em atividades do mundo real que exigem tomada de decisão complexa, processamento motor e movimento. Muitas profissões, incluindo militares, socorristas, trabalhadores em transportes e trabalhadores em turnos de fábrica, exigem uma função física e cognitiva ideal para garantir o sucesso, a segurança no local de trabalho e a produtividade. O sono insatisfatório afeta negativamente a vigilância e está associado à redução do bem-estar e da produtividade no trabalho, sendo assim muitos indivíduos recorrem ao uso da cafeína para neutralizar as consequências cognitivas do sono deficiente e restaurar o desempenho ideal no trabalho. Nestas circunstâncias, que podem incluir restrição de sono, a administração repetida de cafeína é uma estratégia bastante utilizada para manter as capacidades físicas e cognitivas. No entanto, alguns estudos têm mostrado que o uso do café para combater o sono insatisfatório pode, portanto, ser prejudicial em situações que requerem controle inibitório.
O aprimoramento cognitivo no local de trabalho ou na tentativa de obter melhores resultados acadêmicos através do uso de drogas estimulantes como anfetaminas tem recebido atenção crescente entre universitários e jovens que vão fazer vestibular, mas ainda pouco entre profissionais da bolsa de valores, vigias noturnos, profissionais da saúde plantonistas e tantas outras profissões que podem ter maior privação do sono.
Dentre essa classe, o metilfenidato é um agente popular, que atua por meio de agonismo dopaminérgico e noradrenérgico indireto e, portanto, é proposto para melhorar o desempenho em domínios cognitivos dependentes de catecolaminas, como atenção, memória e funções executivas dependentes do córtex pré-frontal. O metilfenidato vem sendo infelizmente utilizado amplamente para aprimoramento cognitivo sem supervisão médica. A eficácia do medicamento para aprimoramento cognitivo está bem documentada ao longo de uma curva dose-resposta, principalmente para indivíduos portadores de Transtorno de Déficit de atenção e hiperatividade (THDA). No entanto, a Academia Americana de Neurologia decidiu que existe uma base moral, ética e legal para prescrever o medicamento para aprimoramento cognitivo. No entanto, o medicamento não é isento de riscos, os quais devem ser criteriosamente avaliados para cada caso em particular já que tem efeitos adversos conhecidos, dependentes da dose, que podem ter ramificações graves e muitas vezes levar a uma má adesão. O risco relativo do metifenidato causar morte súbita/arritmia é de 1,46 (intervalo de confiança de 95%, 1,03-2,07), e há cerca de 20 milhões de estudantes universitários nos Estados Unidos em 2020. A taxa de morte súbita/arritmias nesta idade grupo varia entre 1 e 10 por 100.000. Isto se traduz em um excesso de 146 mortes causadas por metilfenidato todos os anos nos Estados Unidos, considerando apenas os estudantes do ensino superior.
A conhecida lisdexanfetamina também é outra droga lícita de prescrição que está neste pacote que vem sendo chamado de “doping do bem”. As razões mais comuns apresentadas para o uso de estimulantes anfetamínicos no contexto de trabalho têm sido o desejo de maximizar o tempo, aumentar a motivação e lidar com a memorização. No entanto, preocupações de segurança inerentes; evidências epidemiológicas e experimentais sugerem que existem considerações simpatomiméticas, cardiovasculares e aditivas que podem restringir ainda mais seu uso em determinados grupos demográficos.
Por isso que este tema do chamado “doping do bem “ é um convite a um debate ético-clínico de suma importância seguido de um plano de ação para garantir que a realidade atual de milhões de jovens que usam tais produtos sem supervisão e que precisam ser melhor avaliados e alertados.
Referências
Gideon Koren, Liat Korn. The Use of Methylphenidate for Cognitive Enhancement in Young Healthy Adults: The Clinical and Ethical Debates. J Clin Psychopharmacol. 2021 Mar-Apr;41(2):100-102. doi: 10.1097/JCP.0000000000001336.
Elisabeth Hildt, Klaus Lieb, Andreas Günter Franke. Life context of pharmacological academic performance enhancement among university students–a qualitative approach. BMC Med Ethics . 2014 Mar 7:15:23. doi: 10.1186/1472-6939-15-23
Jason R Anderson, Payton L Hagerdorn, John Gunstad, Mary Beth Spitznagel. Using coffee to compensate for poor sleep: Impact on vigilance and implications for workplace performance. Appl Ergon. 2018 Jul:70:142-147. doi: 10.1016/j.apergo.2018.02.026. Epub 2018 Mar 20.