Por Alessandra Diehl
Atualmente, as ciências biomédicas estão trazendo um foco crescente para os chamados “determinantes sociais da saúde”, os quais a Organização Mundial da Saúde (OMS) define como “as condições nas quais as pessoas nascem, crescem, trabalham, vivem e envelhecem, os sistemas colocados em prática para lidar com doenças e o conjunto mais amplo de forças e sistemas que moldam as condições da vida diária.”
Muitas vezes, os interesses comerciais estão interligados a esses fatores sociais e ambientais, o que levou ao reconhecimento pela OMS e outras agências internacionais da necessidade de estudar e abordar os mesmos como um problema real a ser enfrentado por várias sociedades ao redor do mundo. Os interesses comerciais são um componente importante dos determinantes sociais de comportamentos e transtornos adictivos.
Estamos presenciando descaradamente esse fenômeno acontecer no Brasil após a “legalização” dos jogos de azar e a liberação de Bets e outras formas de apostas.
A Dra. Nora Volkow, do NIDA, escreveu recentemente em seu blog sobre este tema e interessou-me particularmente o seguinte trecho:
“O comportamento potencialmente aditivo online não se limita às mídias sociais. O jogo online e as apostas esportivas são legais em um número crescente de estados e países, com limites de idade de 18 ou 21 anos ou mais, dependendo da jurisdição. Isso proporcionou novas oportunidades para as empresas se aproveitarem de indivíduos vulneráveis a dependência do jogo. Os perigos do jogo online podem ser maiores do que os do jogo tradicional em cassinos físicos e casas de apostas. Pesquisas mostraram que os maiores fatores de risco para o jogo problemático estão associados a produtos de jogo que permitem jogo de forma contínuo, uma característica de muitos ou da maioria dos produtos de jogo online.”
A pergunta que não quer calar e que foi muito assertivamente levantada pela Dra. Nora Volkow é: “Como a Saúde Pública “sai na frente” dessas indústrias para mitigar os danos reais e potenciais que elas podem causar? “
Intervenções políticas semelhantes às que foram aplicadas com sucesso ao tabaco e ao álcool podem ser instrutivas. Mas sobretudo, pode nos ensinar que a conta da arrecadação de impostos com estes produtos não fecha, ou seja, não cobre os custos gastos sociais e da saúde com milhares de pessoas adoecidas por causa dos jogos de apostas, endividadas e sobretudo, com pensamento suicida e tentativas de suicídio porque não conseguem ver uma saída para as imensas dívidas e falência econômica.
O texto da Dra. Nora foi enfático ao dizer que a história já nos mostrou que as empresas como a do tabaco, do álcool, da maconha, dos cigarros eletrônicos e agora dos jogos de apostas frequentemente colocam os lucros acima da saúde pública, muitas vezes com consequências trágicas para toda a sociedade que fica com os prejuízos socializados enquanto os lucros foram privatizados.
À medida que enfrentamos o cenário em rápida evolução de produtos e tecnologias aditivas e potencialmente causadoras de dependência, é imperativo e urgente que conduzamos pesquisas para entender como os interesses comerciais afetam a saúde pública e a saúde e o bem-estar individuais.
Mas mais importante ainda, é a necessidade premente de nossos ministros ouvirem os profissionais da saúde que podem ajudar a orientar políticas públicas, bem como informar toda a sociedade brasileira do desenvolvimento de intervenções de prevenção e tratamento baseadas em evidências para a avalanche de pessoas com transtorno por jogos que está se acumulando e já chegando em nossos consultórios de forma rápida e preocupante.
Alessandra Diehl
Psiquiatra, mestre e doutora pela UNIFESP, pós doutora pela USP de Ribeirão Preto. Especialização em dependência química e sexualidade humana. Membro do Conselho Consultivo da ABEAD