Por Anne Orgler Sordi
O uso de substâncias por mulheres cis e trans vem se tornando um tema cada vez mais relevante em diversos países. Enquanto na década de 80 a estimativa era de que homens tinham 5 vezes mais chances do que as mulheres e serem dependentes químicos, hoje essa equação vem se equilibrando, e espera-se que 1 em cada 3 usuários de substâncias seja do sexo feminino. No Brasil, o consumo de álcool entre as mulheres, por exemplo, cresceu cerca de 20% de 2006 a 2012, portanto, equiparando-se cada vez mais ao consumo dos homens. Os anos da pandemia também provocaram um aumento substancial no consumo de álcool por mulheres, especialmente entre mulheres que exerciam o papel de cuidadoras nesse período de confinamento. Além do consumo de álcool, observou-se um aumento importante no uso de dispositivos eletrônicos para fumar. Ademais, o uso de benzodiazepínicos por mulheres no Brasil segue tendo índices muito elevados quando comparados a outros países.
A busca pela equidade entre os gêneros, por um lado, tem proporcionado uma diminuição de diversos estigmas relacionados às mulheres, as quais hoje ocupam espaços e hábitos que antigamente eram mais aceitos no contexto masculino. Todavia, isso também abre espaço para que as indústrias de bebidas e tabaco identifiquem um público muito susceptível a mudanças de comportamento, e com maior poder aquisitivo para tal. Por isso, podemos observar estratégias de marketing que se inserem em novelas, seriados de televisão, TikTok e páginas digitais de influencers, estimulando o consumo dessas substâncias em um público de meninas cada vez mais jovens. Atualmente, é importante ficar atendo a novas formas de transtornos aditivos que tem aparecido com frequência em mulheres. São exemplos a adição por psicoestimulantes para emagrecimento e doping cognitivo, compulsão por compras de Internet e aplicativos de celular, dependência de jogos eletrônicos (que supreendentemente é bastante semelhante ao público masculino no Brasil) e o consumo cada vez mais pesado das medicações hipnóticas, como o zolpidem. Fora isso, também tem havido um aumento no público feminino mais jovem do consumo de drogas sintéticas como ecstasy, alucinógenos, GHB e ketamina.
As pesquisas demonstram que a iniciação do uso de álcool e drogas por mulheres, muitas vezes, se dá como uma forma de lidar com sentimentos de solidão, baixa autoestima, depressão e isolamento que são característicos da adolescência. Todavia, um dos fatores de risco mais importantes para o desenvolvimento da dependência química em mulheres são a vivência de traumas e de violência. Sabe-se que a prevalência de violência, maus-tratos, abuso e traumas infantis apresenta uma correlação positiva importante com o uso de álcool e drogas, e, no público feminino, essa correlação é ainda mais significativa. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 denuncia um aumento em todas as formas de violência contra a mulher no ano de 2022, tendo um crescimento de 6,1% de feminicídios e 2,9% nas agressões em violência doméstica. Além disso, impressiona que a frequência dos casos de assédio sexual, nesse mesmo período, chegou um aumento de 49,7%, e de 16% nos casos de estupro. Dessa forma, a presença de espaços de tratamento, onde as mulheres possam se sentir acolhidas e protegidas para falar sobre essas vivências, pode fazer uma diferença significativa nas chances de sucesso terapêutico.
Para além das questões psicossociais, existem uma série de variáveis biológicas que também precisam ser compreendidas quando falamos de mulheres e dependência química. É importante entender que o corpo feminino se relaciona de uma forma diferente daquela do corpo masculino com o álcool e outras drogas. Já é sabido, por exemplo, que as mulheres tendem a progredir de forma mais rápida para os transtornos por uso de substância nas suas formas mais graves. Algumas questões hormonais podem justificar essas diferenças. As mulheres tendem a ficar alcoolizadas mais facilmente do que homens, especialmente por apresentarem uma menor atividade de enzima que metaboliza o álcool. Isso faz com que elas fiquem mais vulneráveis ao desenvolvimento de doença hepática alcoólica, problemas cardíacos e cerebrais relacionados a esse consumo. Evidencias ainda apontam que a neurodegeneração provocada pelo transtorno por uso de álcool se dá de forma mais intensa nas mulheres. O efeito do estrogênio no fígado também pode acelerar o processo para o desenvolvimento de cirrose. E o próprio consumo de bebidas alcoólicas em diferentes etapas vida está associado com alterações hormonais que podem afetar tanto maturidade reprodutiva, quando aumentar o risco para o desenvolvimento de câncer de mama. Essas questões hormonais relacionadas especialmente ao estrogênio, deixam as mulheres inclusive mais susceptíveis aos efeitos reforçadores da cocaína. Além disso, o fato de as mulheres terem um menor volume de água corporal as deixa mais susceptíveis aos efeitos deletérios do álcool e aumentam o risco morte por edema cerebral e pulmonar em usuárias de ecstasy.
Isso tudo justifica a necessidade de espaços dedicados ao tratamento da dependência química para mulheres, onde elas possam se sentir confortáveis para abordar todas as particularidades que envolvem o universo feminino tanto do ponto de vista fisiológico, quanto psicossocial. Considerando as vulnerabilidades das mulheres usuárias de substâncias, esses espaços podem ser uma janela de oportunidade para cuidar de outras questões como anticoncepção, proteção contra doenças sexualmente transmissíveis, exames ginecológicos de rotina, hábitos de vida saudáveis, emprego e maternidade. Como posto anteriormente, muitas mulheres acabaram usando drogas por vivenciarem situações violência na infância, e trabalhar essas questões ao longo de um tratamento é uma forma de prevenir para que elas não perpetuem esse tipo de violência aos filhos. Além disso, são espaços onde muitas vezes elas passam a identificar a violência que sofrem em casa ou no trabalho, e podem ser encorajadas e orientadas a buscar a ajuda necessária.
Mas quando existe a intensão de criar esses espaços de tratamento, também se deve levar em consideração uma série de barreiras que dificultam a busca pelos atendimentos. As mulheres são muitas vezes as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos e/ou dos pais, tem jornadas duplas de trabalho e são as cuidadoras da casa. Então, propiciar estruturas de acolhimento e tratamento de fácil acesso, em locais onde se identifiquem essas populações mais vulneráveis, disponibilizar horários que não coincidam com os momentos de maiores demandas da rotina com a casa e com os filhos, e proporcionar segurança e sigilo, considerando que muitas vivenciam situações de violência doméstica, são fatores que facilitam a adesão. Outra maneira de acessar essas mulheres, é criando protocolos de avaliação, intervenções breves e encaminhamento para tratamento em ambientes que elas já frequentem, como as unidades básicas de saúde ou os consultórios de rua. A possibilidade de criar protocolos que identifiquem e acolham essas mulheres em ambiente hospitalar também é de suma importância, pois grande parte dos problemas clínicos que resultam em internações são decorrentes do uso crônico de álcool, tabaco e outras drogas. E por último, uma atenção ainda mais especial deve ser dada às gestantes. Segundo a Pesquisa Nacional sobre Uso de Drogas e Saúde de 2013, estima-se que 5,4% das gestantes entre 15 e 44 anos façam uso de drogas ilícitas. E para as drogas lícitas essa porcentagem é ainda maior. Inúmeros estudos apontam para o impacto do uso de álcool, tabaco e outras drogas no período gestacional, aumentando o risco desfechos negativos tanto na gestação (ex: disfunções placentárias, aborto, parto prematuro), quanto no desenvolvimento do bebê (ex: baixo peso ao nascer, teratogenicidade, alterações autonômicas persistentes no recém-nascido, alterações no desenvolvimento cognitivo). Dessa forma, a gestação e puerpério pode ser considerados uma janela motivacional que merece muito investimento para o tratamento dos transtornos por uso de substância.
Ainda que a literatura científica venha avançando aos poucos para evidenciar todas essas particularidades do universo feminino no que tange às adições, o investimento público ainda é muito escasso. Cabe a nós, profissionais da saúde que transitamos nesses espaços, pressionar insistentemente os governos e as instituições para que se possam construir estruturas e modelos de atendimento apropriados para as necessidades das mulheres usuárias de substâncias.