Por Alessandra Diehl

Finalmente, esta semana tivemos a triste notícia da verdadeira causa da morte do ator Matthew Perry, nosso eterno Chandler do seriado americano de “Friends”. O relatório toxicológico divulgado na sexta-feira (15) pelo Gabinete do Examinador Médico do Condado de Los Angeles atesta que Perry morreu devido a “efeitos agudos da ketamina.

Mas você sabe que droga é essa  popularmente conhecida como “Key”, “Special K”, “angel dust”, “K”, or “Kit Kat”? Pois bem, a história da Ketamina começa em 1962, quando Calvin Stevens, do laboratório farmacêutico Parke-Davis, a sintetiza a partir da fenciclidina, uma molécula com propriedades psicodislépticas, alucinógenas e dissociativas. Após a primeira administração de ketamina a humanos em 1964 na prisão de Jackson (Michigan, EUA), foram relatados seus efeitos dissociativos associados à anestesia curta, e uma patente para seu uso em humanos foi registrada em 1966. Na década de 1990, a descoberta do opioide- a hiperalgesia induzida despertou interesse na ketamina como analgésico.

Taxas de consumo no mundo

É usado principalmente nos Estados Unidos da América (EUA), mas hoje em dia o uso recreativo se espalhou por vários lugares do mundo. Atualmente, o continente asiático emerge como uma importante região geográfica consumidora desta substância; a ketamina é classificada como a primeira escolha para drogas consumidas indevidamente entre jovens abusadores em Hong Kong. Nos países ocidentais, o uso indevido de ketamina é de cerca de 1–2%. No entanto, o uso recreativo desta droga também aumentou no Reino Unido, Austrália e China. Num inquérito francês entre 2012 e 2017, o uso indevido de ketamina foi predominante em 67% das novas substâncias psicoativas detectadas. A partir destas informações, acredita-se que o uso recreativo da Ketamina não se restringe a alguns países; pelo contrário, essa substância psicoativa está espalhada mundialmente.

O risco de abuso e dependência da ketamina

A ketamina é comumente usada indevidamente por via intranasal, inalada ou fumada. Quando administrado na forma líquida, os usuários injetam no corpo ou misturam em bebidas alcoólicas por via oral.

Os primeiros casos de abuso de ketamina foram notificados em 1992 em França, levando a uma vigilância especial por parte das autoridades de saúde, e à sua inclusão na lista de “estupefacientes” em 1997. Em outras palavras, uma substância natural ou sintética que atua nos centros nervosos, com propriedades analgésicas e narcóticas, e cujo uso prolongado pode provocar habituação e dependência, com graves perturbações da personalidade e deterioração física e psíquica.

O uso de Ketamina para fins não médicos surgiu concomitantemente ao seu uso como anestésico entre jovens que buscam os efeitos dissociativos desta substância. O abuso de ketamina permaneceu em níveis relativamente baixos, mas consistentes durante muitos anos. No entanto, uma significativa escalada do uso começou no início dos anos 2000 associada à discotecas e cenas rave. Devido ao seu uso nesses ambientes, a cetamina tem sido algumas vezes referida como uma “club drug”. Entre os efeitos buscados pelos usuários estão uma onda de euforia, a sensação de relaxamento e efeitos dissociativos e alucinógenos.

Hoje, o uso indevido de ketamina aumentou em todo o mundo e tornou-se uma substância atraente para uso recreativo, emergindo gradualmente de círculos alternativas de música eletrônica para se espalhar por cenas de festas mais comerciais. Estes elementos representam uma preocupação de saúde pública, associada ao risco de desenvolvimento de novos análogos sintetizados quimicamente, cujos efeitos nocivos ainda são pouco conhecidos.

Nos últimos anos, o uso em humanos de ketamina, e em particular do seu enantiômero esketamina, mudou para o tratamento da depressão. Como a ketamina e os agentes dissociativos relacionados também podem ser mal utilizados para fins recreativos, isso cria preocupações significativas quanto à responsabilidade de abuso quando prescritos para a depressão.

Ketamina e álcool

Além disso, o coabuso com álcool é frequentemente identificado entre os usuários indevidos de ketamina. Considerando que a ketamina e o álcool compartilham diversos alvos farmacológicos, o consumo de ambas as substâncias psicoativas pode intensificar sinergicamente as consequências toxicológicas, tanto sob o efeito de drogas disponíveis nos sistemas corporais quanto durante a abstinência.  A figura abaixo ilustra várias destas consequências no organismo que incluem: Edema pulmonar, apnéia, hipertensão, taquicardia, arritmias, prejuízo de memória.

Figura: Natalia Harumi Correa Kobayashi e colaboradores (2022)

O abuso de substâncias psicoativas tem aumentado em todo o mundo, catalisado por fatores econômicos e sociais, além de calamidades globais que afetam a humanidade. Ao contrário do álcool, que é a droga psicoativa mais consumida, o uso indevido de Ketamina tem aumentado, atribuído às suas atividades psicodélicas. Porém, a coingestão desses medicamentos ocorre entre indivíduos que ignoram os potenciais toxicológicos de cada medicamento e os riscos do seu uso combinado. As consequências dos mecanismos toxicológicos partilhados pela Ketamina, pelo etanol  epor outros medicamentos como os opiodes utilizados para o tratamento da dependência de opioides podem intensificar os danos em vários sistemas do corpo, o que pode culminar em resultados fatais como ocorreu com Mathew Perry.

Referências

Natalia Harumi Correa Kobayashi, Sarah Viana Farias, Diandra Araújo Luz 1, Kissila Márvia Machado-Ferraro, Brenda Costa da Conceição , Cinthia Cristina Menezes da Silveira 1, Luanna Melo Pereira Fernandes, Sabrina de Carvalho Cartágenes, Vânia Maria Moraes Ferreira, Enéas Andrade Fontes-Júnior, Cristiane do Socorro Ferraz Maia. Ketamine plus Alcohol: What We Know and What We Can Expect about This. Int J Mol Sci . 2022 Jul 15;23(14):7800. doi: 10.3390/ijms23147800.

Tharcila V Chaves, Bob Wilffert, Zila M Sanchez. Overdoses e mortes relacionadas ao uso de cetamina e seus análogos: uma revisão sistemática. Sou J, abuso de álcool e drogas. 4 de março de 2023;49(2):141-150. doi: 10.1080/00952990.2022.2132506. Epub 2022, 21 de novembro.

Alessandra Diehl

Psiquiatra, mestre e doutora pela UNIFESP, pós doutora pela USP de Ribeirão Preto. Especialização em dependência química e sexualidade humana. Membro do Conselho Consultivo da ABEAD

@dra.alessandradiehl

 

 

 

 

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