Até quando invisível, periférica ou delegada a um segundo plano nos centros de tratamento?
Por Alessandra Diehl
Nestes mais de vinte anos que venho trabalhando com pessoas com problemas pelo uso de drogas e seus familiares, sempre notei uma lacuna imensa na abordagem de questões relativas à dimensão sexual desses indivíduos nos contextos de tratamento em que já trabalhei. À medida que comecei a estudar mais o universo da dependência química, mais eu sentia a necessidade de aprofundar-me no universo da sexualidade humana, pois já percebia que existia uma associação estreita entre esses dois mundos.
No entanto, quando quis me apropriar desses conhecimentos, tive bastantes dificuldades de encontrar material compilado ou até mesmo de obter experiências de outras pessoas que trabalhavam com a dependência química em estruturação de programas e ações voltadas às questões relativas à dimensão sexual. Também percebi barreiras em fazer com que essas duas áreas do conhecimento começassem a dialogar de forma assertiva e distante de ideologias, “achismos” ou dogmas pré-estabelecidos pelas esferas de cuidados vigentes.
E por acreditar que a sexualidade não pode mais seguir sendo invisível, periférica ou delegada a um segundo plano nos inúmeros locais disponíveis para o tratamento de pessoas com transtornos decorrentes do uso de substâncias é que vim desenvolvendo trabalhos e estudos nessa interface do conhecimento. É urgente a necessidade de aumentar a compreensão dos profissionais da saúde, em especial daqueles que lidam diretamente com comportamentos aditivos, sobre a sexualidade, a saúde sexual, a diversidade sexual, os comportamentos sexuais de risco e a disfunção sexual entre usuários de álcool e outras drogas.
Além disso, é fundamental compreender a necessidade de se avaliar o histórico de trauma sexual, abuso sexual, aborto, estupro e a necessidade de incorporar a avaliação de fatores de risco e do estímulo a práticas sexuais mais seguras na rotina dos tratamentos atualmente disponíveis para a dependência química. Também é igualmente urgente que a abordagem seja respeitosa, inclusiva, ética, numa atmosfera de não julgamento e com mais acolhimento para que as pessoas possam sentir-se abertas a falar sobre sua sexualidade, seus vínculos, seus problemas sexuais, seus afetos e desafetos.
Embora a mudança de comportamento individual seja fundamental para melhorar a saúde sexual, também são necessários esforços para lidar com os determinantes mais amplos de comportamento sexual, particularmente aqueles que se relacionam com o contexto social. Intervenções comportamentais abrangentes são necessárias e devem considerar o contexto social na estruturação de seus programas em nível individual, assim como tentar modificar as normas sociais que apoiam a manutenção de mudança de comportamento, e trabalhar as competências de forma assertiva e os fatores que contribuem para determinado comportamento sexual de risco, por exemplo. Incluir a dimensão sexual nos tratamentos de usuários de substâncias é compreender que estamos respeitando tudo aquilo que nos torna mais humanos e nos realiza enquanto pessoas no sentido mais profundo dessa compreensão.
Novos avanços no tratamento de pessoas portadoras de transtornos por uso de substâncias têm sido observados nas últimas décadas, como, por exemplo, um maior conhecimento dos mecanismos de neurotransmissão cerebral, a descoberta do sistema endocanabinoide e novas terapias psicológicas sendo reformuladas para melhor atender a essa crescente demanda de novos usuários de álcool e outras drogas. No entanto, cada descoberta traz novos desafios às principais obrigações éticas de honrar o consentimento informado, proteger a confidencialidade e respeitar a justiça, ao mesmo tempo protegendo essas pessoas de danos e assegurando o bem do paciente individualmente e coletivamente.
O tratamento de indivíduos com transtornos por uso de substâncias e questões relativas às suas sexualidades também está associado a muitos dilemas éticos. Um corpo crescente de evidências neurobiológicas que contesta as suposições tradicionais sobre o “livre-arbítrio” e a “responsabilidade” evoca abordagens mais deliberadas e com nuances para o consentimento informado e a participação das políticas públicas sobre as drogas e da psiquiatria forense no âmbito da prestação de cuidados. Portanto, muitos profissionais da saúde e da saúde mental que trabalham na área da adição enfrentam vários dilemas éticos, os quais têm muitas dificuldades de solucionar ao tentar equacionar as suas tomadas de decisões dentro dos quatro princípios éticos – autonomia, beneficência, não maleficência e justiça.
Ao discutirmos os transtornos por uso de substâncias e suas questões sexuais, deve-se ter em mente que existem diferenças importantes entre os países em termos de aspectos sociais e culturais, bem como o quadro legislativo e o sistema de prestação de cuidados de saúde em cada local. Por essas razões, as questões relacionadas à sexualidade têm sido alvo de acalorados debates e inúmeros questionamentos nos dias atuais. Algo semelhante ocorre com a abordagem de pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas e, eventualmente, sofrem com a dependência química.
Daí o apelo aos profissionais para reexaminarem suas percepções, atitudes e comportamentos, com vista a auxiliar na construção de uma visão de mundo mais inclusiva e pluralista, contribuindo para estimular a reflexão sobre como prevenir o aparecimento e desenvolvimento de problemas relativos à sexualidade humana e, sobretudo, a compreender os papéis desempenhados por vários atores nessa interface (sexualidade e drogas) que merecem acesso a recursos diversos em suas comunidades.
Saúde sexual e políticas públicas devem caminhar lado a lado, uma vez que muitas das questões envolvidas com a sexualidade podem ter profundas implicações para a saúde pública. Convencionalmente, a saúde pública tem focado nos efeitos adversos do comportamento sexual de risco. Uma delas, a questão do HIV/AIDS, por exemplo, teve um grande impacto na sociedade, uma vez que mudou conceitos, pesquisas e políticas em matéria de saúde e sexualidade inclusive no nosso país, trazendo também grande ônus de morbidade para as sociedades ao redor do mundo. Quando o primeiro caso sintomático de AIDS apareceu, no início dos anos 80, ter o vírus HIV foi considerado como uma “sentença de morte”. Apesar de ainda ser uma questão de saúde muito grave em nível mundial, mais de 30 anos depois do seu surgimento é inacreditável que pessoas portadoras de HIV, por exemplo, são vistas ainda nos dias atuais como pessoas “promíscuas”, “sujas” ou “contaminantes”, apesar de inúmeras campanhas e ações, tais como “Gettingto Zero”, para zerar novas infecções pelo HIV, zerar mortes relacionadas à AIDS e zerar a discriminação. Após três décadas da epidemia, a estigmatização continua a ser uma característica central da experiência do paciente com HIV/AIDS. O estigma não é um conceito novo. No entanto ele permanece altamente significativo no contexto do HIV/AIDS.
Existe um amplo consenso de que o estigma relacionado ao HIV/AIDS compromete o bem-estar das pessoas que vivem com a doença. Quando então somamos ao uso de substâncias (álcool, crack, maconha, opioides e outras) às questões sexuais, este estigma tende a ser muito maior, e, por conseguinte podendo dificultar o acesso ao tratamento, sendo uma barreira para a busca de ajuda, invisibilizando, vulnerabilizando e silenciando esta causa e estas questões. Não é à toa que o relatório do UNAIDS tem destacado a urgência de alcançar pessoas que usam drogas para reduzir infecções por HIV.
Já existe evidência científica acumulada da estreita associação entre o uso de álcool, tabaco e outras drogas, o exercício da sexualidade e a prática de comportamentos sexuais de risco, os quais podem contribuir para as principais causas de morbidade e mortalidade entre os adultos e adultos jovens, com elevados custos sociais e financeiros para a sociedade. Isso porque o álcool e outras substâncias, como a maconha, a cocaína e o ecstasy, tendem a reduzir a capacidade de tomada de decisão e aumentar o risco de sexo não protegido, exposição à violência sexual, maior violência no namoro, causando maiores possibilidades de gravidez não planejada, aborto, infecções sexualmente transmissíveis (IST), tais como sífilis, HIV e Hepatite B e C e a prática de sexo com múltiplas parcerias sexuais.
No Brasil, dados conduzidos pelo Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias para Políticas Públicas para o Álcool e as Drogas (INPAD) no II Levantamento Nacional do Consumo de Álcool e Drogas (LENAD) em 2012 revelam que de uma amostra de 1.742 adolescentes e jovens de 14 a 25 anos, sendo que 1.157 dos adolescentes tinham de 14 a 17 anos, cerca de 4,8% haviam usado maconha no último ano, 3,4% haviam usado cocaína no último ano e 43% dos jovens entre 14 e 17 anos também usou cocaína. Enquanto que 55% dos jovens de 18 a 21 anos e 61% dos de 22 a 25 anos beberam num padrão de binge (4 doses para as meninas e 5 para os meninos, em 2 horas, em uma única ocasião. Quanto à prática de sexo seguro, 34,1% relataram que nunca, ou quase nunca, usavam preservativo (camisinha) nas relações sexuais, sendo que o não uso foi maior entre as meninas, com 38,2% dos casos, e 29,6% dos casos em meninos. O aborto provocado e/ou espontâneo ocorreu em 12,4% das jovens de 14 a 20 anos, e 14,8% entre as de 20 a 25 anos.
Os dependentes de substâncias constituem uma população bastante interessante e particularmente complexa para o desenvolvimento de estudos, intervenções terapêuticas, prevenção e promoção de saúde com relação à associação de uma ampla gama de possibilidades de expressão de comportamentos sexuais, que incluem risco sexual, vulnerabilidades, disfunções sexuais, comportamento compulsivo e violência, por exemplo. Apesar da abundante literatura internacional sobre comportamentos sexuais e uso de drogas, poucos estudos, principalmente no Brasil, têm explorado a prevalência de relações sexuais desprotegidas em usuários de drogas não injetáveis e os seus comportamentos sexuais, tanto em contextos epidemiológicos quanto em ambientes clínicos, como de outreachtreatment, ou em locais de “bolsões e cenas” de maior concentração de uso de drogas em grandes centros urbanos, os quais muitas vezes não são captados por levantamentos domiciliares. Os locais de tratamento tradicionais, em geral, captam apenas uma parte dessa população, ou apenas os mais motivados.
A importância desta temática para mim é imensa, pois sabemos que a sexualidade é uma faceta inerente ao ser humano. Considerada uma dimensão central da vida de todos nós, e, portanto, deve ser entendida em sua multidimensionalidade frente à complexidade e à importância de sua presença em todas as dimensões do desenvolvimento humano dentro de um olhar multidisciplinar.
Temo pelo crescimento atual de crenças obscurantistas dentro de um preocupante cenário neoconservador, o qual evidencia retrocessos em relação às políticas públicas arduamente conquistadas nas últimas décadas. Além de horrorosas estatísticas que ainda colocam o Brasil como o país mais homolesbotransfóbico do mundo. Onde até bem pouco tempo a homofobia não era considerada um crime hediondo. Por isso, é urgente e necessário fomentar uma reflexão sobre a sexualidade humana pautada em evidências científicas e focada na atuação dos profissionais de saúde, educadores, legisladores, profissionais da mídia entre outro. A observação mostra um apelo aos profissionais para reexaminarem suas percepções, atitudes e comportamentos, com vista a auxiliar na construção de uma visão de mundo mais inclusiva e pluralista.