Autora: Carolina Costa

Entreouvidos às 12h na fila do mercado à esquina de casa: homem jovem, sujo de tinta e gesso, põe 4 latões de cerveja no balcão do caixa.

– Não tem sacola mais escura, não?

A caixa, com algum sorriso de meia boca e sem nenhuma resistência , responde:

– Não tem. Vc pode colocar a caixa da cerveja ao contrário junto.

Homem:

– Não. Já “rodei” de outra vez que fiz isso. Então põe duas sacolas?

Não fui ao mercado de forma muito diferente deste homem. Tinha ido ao mercado comprar um chocolate para ir comendo no carro ao longo do trânsito para o trabalho. Peguei a menos de 1 metro do caixa, não gastei muito tempo, nem aquele necessário para deliberar se era aquilo mesmo que precisava. Os doces estavam próximos da geladeira onde ficavam as bebidas alcoólicas, que, por sua vez, ficavam do lado dos produtos de tabaco sem propaganda. Todos os integrantes do “trio parada dura” (tabaco, álcool e açúcar) em frente ao caixa para aqueles que querem aliviar o desprazer no impulso.

Naquele exato momento, a única diferença entre mim e o homem parecia apenas um metro a mais para o lado esquerdo, onde tinha a geladeira.  Ambos escolhendo uma válvula de escape a seu modo. A partir daí, entretanto, era bem diferente, vidas totalmente opostas. Ele carregaria pedra várias vezes como um Sísifo piorado, descoordenado pela bebida alcoólica, consolidando a profecia que se autorrealiza: ladeira abaixo. Já eu atenderia no ar condicionado, ou seja, Sísifo chegaria no cume da montanha com a pedra sendo levada em rodinhas. Retrato da desigualdade de oportunidades que permite que uns alcancem e exerçam seu propósito de vida. Já outros, nunca, só restando anestesiar-se no agora. Neste caso, com álcool.

Por alguns segundos, fiquei com raiva de como a mera disposição de produtos nos manipula e, junto a uma pitada de “eu mereço”, formam a tempestade perfeita. Maldito Iluminismo que deixou como lastro a falácia de que é “só o homem pensar” para existir e ser livre. Se temos uma certeza nessa vida é que a emoção tem sempre primazia.

Lembrei de tantos pacientes que atendi no SUS e que gastavam tudo que ganhavam dos “bicos” nas obras com álcool. Lembrei das obras atrasadas que presenciei ou que ouvi colegas reclamarem. Muitas em que o pagamento se fazia por diária. Quanto mais a obra demorasse, maior era a recompensa, seja álcool, dinheiro ou os dois.

Lembrei da bula de alguns medicamentos psicotrópicos que orientam “não operar máquinas”  e da consolidada campanha “Se beber, não dirija”. Manejar uma furadeira ou levantar pedra sem seus plenos reflexos é risco igual, mas invisível, assim como este homem de trabalho informal. Neste mito de Sísifo à brasileira, Sísifo se rende e carrega a pedra até que o álcool não permita mais, já que amanhã tudo se repete e, ao mesmo tempo, nada se garante.

Impotente, saí do mercado pensando que enquanto nos mantivermos atrás de uma mesa de consultório, o “nada livre arbítrio” preponderaria, assim como ocorreu no, atualmente, bem sucedido movimento para controle do tabaco. Desejei que o álcool viesse com bula como os psicotrópicos. Que houvesse hora para venda ou até lojas com licenças específicas para o comércio como ocorre em alguns países. Fora que houvesse mais fiscalização em relação à fácil disposição nos mercados. Que se ajustassem os preços para que nunca mais ficassem mais baixos conforme aumenta a concentração de álcool como no caso da cachaça.

Naquele momento, fui testemunha ocular de que Sísifo à brasileira pode derivar de muitos fatores modificáveis por políticas públicas. Então que botemos as “mãos à obra” e ajudemos, pelo advocacy, esse homem e mais tantos a chegar com a pedra ao cume.

Nota: Na mitologia grega, Sísifo precisa levar uma pedra ao topo de uma montanha. Porém, sempre que está perto, a pedra rola e Sísifo precisava descer e percorrer o trajeto novamente, dia após dia, repetindo seu grande esforço.

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