NOTA TÉCNICA SOBRE O SUBSTITUTIVO DO PL 442/1991

Banir ou Regulamentar os Jogos de Azar no Brasil? Perspectivas do ponto de vista de Saúde Pública

Os seguintes associados da ABEAD contribuíram para este documento:

Hermano Tavares, Alessandra Diehl, Gabriel Landsberg, Sabrina Presman e Carlos Salgado.

Contexto e objetivos desta nota técnica

Tendo em vista a sessão deliberativa extraordinária, realizada em dezembro de 2021, para a tramitação e votação em caráter de urgência, na Câmara dos Deputados, já nos primeiros meses de 2022, do substitutivo do Projeto de Lei (PL) 442/1991- o qual dispõe sobre a exploração de jogos de fortuna em todo o território nacional e dá outras providências, propondo a legalização de todas as modalidades de jogos, como cassinos integrados em resorts, cassinos urbanos, jogo do bicho, apostas esportivas, bingos, jogos de habilidade e corridas de cavalos no Brasil – a Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD) elaborou esta nota técnica afim de cumprir com uma de suas missões, aquela de contribuir para o debate informado através da compilação de evidências científicas atualizadas sobre o tema.

Histórico

Os chamados “jogos de foturna” ou “jogos de azar” estão profundamente enraizados na história e na cultura brasileira, sendo que o primeiro registro histórico de jogos de azar no Brasil data de 1784, quando ocorreu o primeiro sorteio dos “bilhetes de loteria”. A regulamentação dos mesmos ao longo dos anos tem alternado entre a legalização e a proibição. No entanto, alguns destes jogos, apesar de proibidos, são extremamente tolerados em todo o país e outros, ainda, sobrevivem na ilegalidade tendo fortes aproximações com o crime organizado; ao mesmo tempo que suas influências culturais ajudam a financiar eventos bastante populares na cultura brasileira, como por exemplo, os desfiles de Carnaval em alguns lugares do país (Tavares, 2014).

A indústria dos jogos de azar tornou-se um negócio global muito rentável no século 21 e isso tem criado a necessidade de uma nova ênfase na prevenção dos problemas associados às práticas de jogos de azar. Tanto o transtorno relacionado ao jogo como os danos relacionados aos mesmos representam, atualmente, um imenso desafio de saúde pública a nível global (Sulkunen et al., 2021).

O status legal atual dos jogos de azar no Brasil e suas brechas

Atualmente, apenas loterias estaduais e federais, apostas em cavalos e jogos de pôquer são permitidos pelas leis brasileiras. O pôquer é considerado um jogo que envolve habilidade, mas não deixa de ser um jogo de azar também, uma vez que envolve aposta. O acaso influencia o resultado no pôquer através do embaralhamento das cartas e pode causar dependência, como toda atividade que envolve apostas. No Brasil, o jogo de pôquer recebeu regulamentação pela Lei Geral do Turismo. O parecer jurídico que o isentou baseou-se exclusivamente nas vertentes do lazer e da habilidade do jogador. Mundo afora o pôquer é explorado comercialmente junto com outras formas de jogo de azar e, geralmente, está sujeito à mesma legislação (Tavares, 2014).

Já a loteria promovida pela Caixa Econômica Federal permite apostas totalmente legais desde 1962, oferecendo diversas formas de apostas, nas quais todo brasileiro, maior de 18 anos, pode participar na Mega Sena, Lotomania, Lotofácil, Lotogol, Loteca, Loteria Federal, Loteria Instantânea, Dupla Sena e Timemania. No Brasil, é totalmente proibido abrir cassinos ou locais de jogos de azar de forma física ou online, assim como, também está proibido o “jogo do bicho”, caça níqueis e bingos. No entanto, um indivíduo brasileiro pode usar a Internet para participar de apostas e jogos em sites hospedados fora do país. Na prática, operar jogos de azar não regulamentados é considerado contravenção, ou seja, um delito menor, passível de punição de até 5 anos de reclusão.

Transtorno por jogo

Desde uma perspectiva mundial, o jogar é muitas vezes visto como uma atividade prazerosa e relativamente inofensiva para a maior parte das pessoas. No entanto, o jogar pode se tornar um transtorno da saúde mental. Ou seja, um transtorno por jogo (TJ) ocorre quando episódios frequentes e repetidos de jogos de azar começam a dominar a vida do indivíduo em detrimento dos valores e compromissos sociais, ocupacionais, materiais e familiares. Além disto, este padrão persistente e recorrente de jogo está associado a sofrimento ou prejuízo substancial (Potenza et al., 2019; Bodor et al., 2021).

A etiologia deste transtorno é complexa, possivelmente com fatores genéticos e ambientais associados. Estudos neurobiológicos também têm implicado estruturas e circuitos córtico-estriato-límbicos na fisiopatologia dessa condição. Esse transtorno tem sido um dos comportamentos aditivos mais estudados na literatura, merecendo a classificação como uma dependência não-química ou uma dependência comportamental (Chee & Lui, 2021; Bodor et al., 2021; Sixto-Costoya et al., 2021). Tais estudos resultaram na sua introdução, como categoria diagnóstica, entre os “Transtornos relacionados a substâncias e outros comportamentos aditivos” no manual diagnóstico e estatístico americano em sua quinta edição (DSM-5). Atualmente, apenas o transtorno do jogo foi colocado nesta categoria, com dados ainda insuficientes para outras dependências comportamentais propostas que justificassem a inclusão das mesmas no manual americano. Já a Classificação Internacional das Doenças em sua décima primeira versão (CID-11) contempla a inclusão de outras dependências comportamentais além dos jogos (Derevensky et al., 2019). 

Prevalência de transtorno por jogo no Brasil

O Brasil, apesar de existirem algumas barreiras de acesso ao jogo, apresenta prevalências semelhantes as de outros países. A prevalência ao longo da vida é de 1,0 e 1,3% para uso problemático e transtorno relacionado ao jogo, respectivamente (Tavares, 2014). Uma progressão mais rápida do jogar de forma regular para o jogar de forma problemático foi encontrada entre mulheres de meia-idade, em amostras clínicas, e em jogadores adolescentes do sexo masculino de uma amostra de base populacional. Além disto, tem chamado a atenção que o jogo entre adolescentes e jovens está associado a formas graves de comportamento de jogar, assim como, a outros comportamentos de risco (Tavares, 2014). 

Riscos e os problemas mais comuns encontrados em portadores de transtorno por jogo 

Entre as comorbidades psiquiátricas mais comuns de amostras clínicas e populacionais, estão: o tabagismo, a depressão, a ansiedade e o abuso de álcool, com uma frequência em torno de 75% (Grant & Chamberlain, 2020). Também se encontram elevadas as taxas de suicídio (em torno de 15%), ideação suicida (cerca de 80% dos indivíduos que procuram tratamento) (Lee et al., 2021; Pavarin et al., 2021), endividamento crônico, divórcio, estresse e dissolução da família. Como qualquer outra dependência, o TJ impõe um elevado ônus para a família, o que já está amplamente documentado (Shaw et al., 2017). O transtorno relacionado ao jogo frequentemente ocorre concomitantemente com outras condições, particularmente outros transtornos psiquiátricos, notadamente a dependência de substâncias (Grant & Chamberlain, 2020). 

A legalização dos jogos de azar e o aumento do número de pessoas com transtorno por jogo 

Revisão da literatura conduzida por Abbott (2020) mostra que a maior disponibilidade de jogos de azar em países ao redor do mundo tem sido associada a um aumento nas taxas de prevalência de pessoas com desenvolvimento de jogo de forma problemática. Embora os jogadores problemáticos sofram danos consideráveis, a maioria dos danos surge de jogadores não problemáticos. Esses danos são substanciais e impactam desproporcionalmente as populações mais marginalizadas ou mais vulneráveis. A carga de danos deve-se principalmente a problemas financeiros, danos aos relacionamentos e à saúde física e mental, efeitos adversos no trabalho e também na educação. Embora as taxas de jogadores problemáticos tenham aumentado inicialmente em muitos locais onde os jogos foram regulamentados, estas taxas diminuíram posteriormente ou estabilizaram. O autor acredita que isso se deva, pelo menos em parte, a um pool acumulado de jogadores problemáticos do passado que são altamente propensos a recaídas e a outros grupos vulneráveis que continuam a sofrer forte exposição ao jogo. Muito preocupante, neste contexto, é que, enquanto a oferta e o acesso permanecerem amplos, os indivíduos vulneráveis manifestarão mais sintomas resultando um aumento da demanda por tratamento (Abbot, 2020; Tavares, 2014).

Disponibilidade e acesso ao tratamento para portadores do transtorno por jogo 

Atualmente, no Brasil, as opções de tratamento são escassas e o sistema público de saúde não está preparado para apoiar os pacientes com desenvolvimento de problemas relacionados aos jogos de azar. Esforços incipientes e contínuos estão sendo feitos para estabelecer um modelo de tratamento que combine psicoterapia e tratamento de comorbidades psiquiátricas com promoção da qualidade de vida. Soma-se neste cenário, o apoio inestimável dos grupos de apoio baseados em modelo de 12 passos (Tavares, 2014). 

A legalização ou regulamentação dos jogos de azar e o turismo 

Em países que legalizaram ou regulamentaram os jogos de azar, o turismo tende a aumentar, assim como também pode aumentar o recolhimento de impostos. No entanto, a pergunta que persiste sem reposta definitiva até hoje e para a qual economistas seriam mais indicados a responder é se esses benefícios superam os custos (tratamento, endividamento, fraudes, policiamento, etc). Uma forma de pender a balança para o lado do benefício financeiro seria autorizar o jogo de azar apenas para os turistas e limitar o acesso da população local. Há notícias de algumas ilhas do Caribe que fazem isso, assim como a China já tentou o mesmo em Macau e não obtiveram muito sucesso (Li et al., 2015; Li & Lai, 2021). 

O desafio dos jogos de azar on-line 

Observa-se que há também um aumento na participação de usuáros em jogos de azar on-line, não apenas de probabilidades e apostas ao vivo, mas também jogos de cassino tanto em países onde a atividade foi legalizada como na Espanha, por exemplo, quanto de usuários de outros países. Os operadores de jogos de azar on-line devem fazer o esforço necessário para conciliar seus interesses financeiros com a proteção adequada da saúde do consumidor. A ausência de regulamentação sobre as informações e advertências que devem constar em sites sobre os riscos decorrentes do jogo torna está tarefa difícil. Para uma real eficácia, melhorias são necessárias, tanto em conteúdo como na forma de tais mensagens (Ruiz, 2020).

Os jogos de azar dentro da pespectiva de saúde pública 

Uma regulamentação ou legalização, se feita corretamente, ou seja, com antecipação de medidas regulatórias e a devida supervisão, deve permitir um controle melhor dos problemas relacionados aos jogos de azar, mas jamais encerrará o jogo ilegal. No entanto, muitas vezes a indústria dos jogos de azar e outros defensores da regulamentação justificam o jogo como uma atividade econômica legítima, se apenas o comportamento problemático individual puder ser minimizado. Por isso, é importante ampliar essa visão para incluir os efeitos da atividade sobre a desigualdade e sua carga sobre as populações vulneráveis (Sulkunen et al., 2020).

A perspectiva deve ser ampliada para um interesse público na distribuição de saúde, riqueza e bem-estar no Brasil. O olhar para o impacto do ponto de vista da saúde pública deveria servir como ponto de partida para a consideração de novas formulações de políticas ou substitutivos em projetos de leis já existentes no Brasil, enfocando-se os danos na população geral e não apenas os riscos indivíduais (Sulkunen et al., 2020).

Certamente, entre estas medidas necessárias do ponto de vista de políticas públicas, estão as restrições à disponibilidade geral de jogos, bem como medidas seletivas para evitar que os jogadores gastem demais. Uma abordagem com foco no interesse público deve também pesar os interesses das indústrias de jogos contra o sofrimento e as perdas das vítimas do jogo. As políticas de saúde pública precisam concentrar-se fortemente na redução da exposição a jogos, bem como aumentar a disponibilidade de intervenções para ajudar jogadores em risco e problemáticos e prevenir recaídas. Políticas públicas e programas provavelmente serão mais eficazes se a heterogeneidade da população for considerada, se forem abordadas a ampla gama de fatores de riscos e fatores de proteção, modificáveis nos níveis individual, comunitário e social. Muitas delas são compartilhadas com outras morbidades sociais e de saúde (Sulkunen et al., 2020).

Conclusão

Acreditamos que o PL 442/1991 envolve questões complexas e que exigem um diálogo amplo com a sociedade de tal monta que promova o engajamento dos diversos atores envolvidos, assim como, um estado que seja atento e possa se antecipar a possíveis problemas como a lavagem de dinheiro, a sonegação fiscal, as fraudes de toda a sorte, as regras de concessão de exploração do jogo, a proteção dos mais vulneráveis (principalmente adolescentes e adultos jovens), a prevenção e, finalmente, o tratamento. Este último, em especial, merece sempre destaque visto que há um aumento previsto na demanda por atenção à Saúde Mental, tendo em vista, não apenas o jogo em si, mas também a agudização de suas comorbidades. O legislador, antes de avançar em medidas liberalizantes, teria de legislar sobre a oferta de tratamento para os casos já demandantes.

Para isso, sugerimos a formação de uma câmara permanente organizada com representantes de todos os setores da sociedade: operadores do jogo, consumidores, lideranças comunitárias (Jogadores Anônimos), o Ministério Público, o governo, técnicos do Ministério da Fazenda, da Saúde, da Educação, do Turismo e estudiosos das universidades. 

Referências

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