Sorvete e cerveja combinam? O primeiro é um comestível clássico da infância e o segundo uma bebida comum da idade adulta. Ambos deveriam estar em lados opostos das festinhas ou dos piquiniques, certo?
A resposta é sim. Mas infelizmente sorvetes com sabor de cerveja uma vez ou outra têm despontado no mercado mundial e, aqui no Brasil, não tem sido diferente. Recentemente tivemos notícias de novas cervejarias que se preparam para lançar novas marcas de sorvetes de sabor de cerveja para o verão de 2022. Combinar álcool e produtos lácteos não é propriamente algo revolucionário. O licor ou o rum há muito tempo aparecem nos milkshakes e nos sorvetes de uva passa.
No entanto, deve haver limites na mistura aparantemente inocente de doces com bebidas destinadas aos adultos. Muito embora as embalagens destes sorvetes coloquem claramente que o produto é destinado para pessoas acima de 18 anos e em determinados países como nos Estados Unidos da América, por exemplo, exista regulamentação do Food and Drug Administration para produtos alimentícios com 0,5% de álcool por volume e, ainda, o Alcohol and Tobacco Tax and Trade Bureau regulamenta qualquer coisa acima disso, preocupa-nos quem irá fiscalizar esta venda aqui no Brasil e se a mesma está ocorrendo de fato apenas para adultos? O Conselho Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária já tinha alertado um grande fabricante brasileiro de cerveja que seu sorvete com sabor de cerveja poderia atrair as crianças porque postagens sobre o produto apareciam na fanpage da empresa no Facebook.
Uma revisão sistemática de pesquisas sobre a associação entre marketing de bebidas alcoólicas para jovens conduzida por Jernigan et al., 2017, com base em estudos publicados desde 2008, usando designs longitudinais sofisticados com mais de 35.000 pessoas, confirmou a associação significativa entre entre a exposição dos jovens ao marketing de álcool e subsequente comportamento de beber.
Aliás a atração deste público infatojuvenil não é por acaso! Dados nacionais recentes da 4ª edição da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) com alunos de 13 a 17 anos que frequentam o ensino fundamental (7º ao 9º ano) e o ensino médio (1º ao 3º ano) de escolas da rede pública e privada de todo o Brasil mostraram que 29,3% dos alunos consumiram ao menos uma dose de bebidas alcoólicas nos 30 dias anteriores à pesquisa, 63,3% dos escolares já haviam ingerido uma dose de bebida alcoólica na vida e 34,6% deles haviam tomado a primeira dose com menos de 14 anos. Cerca de 47% dos escolares declararam ter passado por algum episódio de intoxicação alcoólica. A introdução do álcool na juventude é um problema crescente no Brasil e que apresenta sérios riscos de longo prazo para os adolescentes, incluindo deficiências ocupacionais, educacionais e psicossociais, e aumenta o risco de desenvolver transtornos relacionados ao uso álcool na idade adulta.
Os gastos com propaganda pela indústria do álcool são altos e a publicidade é generalizada. O marketing de bebidas alcoólicas está amplamente difundido em todo o mundo e é um elemento estrutural das indústrias de bebidas alcoólicas. Por outro lado, as respostas governamentais de saúde pública fizeram pouco progresso nos últimos anos e ficaram atrás da inovação da indústria em marketing digital e social. Para mitigar esse problema, o Brasil estabelece uma lei de proibição de compra de bebidas alcoólicas antes dos 18 anos, mas estamos longe de ter uma lei que de fato garanta a proteção deste público, visto que muitos jovens seguem conseguindo comprar e beber bebidas alcoólicas como demonstra os dados do PeNSE citados.
Uma política pública bem conduzida e de fato efetiva tende a funcionar melhor quando existem fiscalização e monitoramento, somada ao forte apoio e mobilização social. Por isso que além da participação governamental na implementação de várias outras leis complementares limitando a posse e o consumo de álcool por menores, sabemos que várias outras estratégias adicionais são necessárias ainda. Entre elas incluem os esforços preventivos e de intervenções que incorporem fatores ambientais, individuais, comunitários e, principalmente, parentais. Isto significa afirmar que as estratégias de diminuir o beber entre crianças e adolescentes também implicam numa atenção especial dos pais para produtos aparentemente inofensivos como “um sorvete de cerveja”, mas que são totalmente incoerentes com o bem estar e cuidados para com os jovens, tendo um claro foco de promoção de vendas direcionado à juventude, os quais, em última instância, podem trazer muitos riscos para a saúde. Por isso pais, fiquem de olho; sorvete e cerveja estão em lados opostos do seu piquinique! Conversem com seus filhos sobre isto, promova um diálogo aberto e honesto sobre postergar a experimentação de qualquer produto que contenha álcool e, sobretudo, monitorem os produtos consumidos pelos vossos filhos.
FONTES:
Jernigan, D., Noel, J., Landon, J., Thornton, N., & Lobstein, T. (2017). Alcohol marketing and youth alcohol consumption: A systematic review of longitudinal studies published since 2008. Addiction, 112, Supplement1, 7–20. doi:10.1111/add.13591
Jernigan, D. & Ross, C. S. (2020). The alcohol marketing landscape: Alcohol industry size, structure, strategies, and public health responses. Journal of Studies on Alcohol and Drugs, Supplement 19, 13–25.doi:10.15288/jsads.2020.s19.13