Escrito por Profº José Mauro Braz de Lima, PhD

Desde os anos 80 e 90, com o preocupante aumento de vítimas fatais e feridos decorrentes dos Acidentes de Trânsito, muitos países, desenvolvidos ou em desenvolvimento, Brasil incluído, e organizações mundiais como a ONU e a OMS, passaram a dar maior atenção e relevância para essas “tragédias anunciadas” que hoje respondem por cerca de 1.3 milhão mortes a cada ano no mundo. Inúmeros países diante deste impacto, somado às consequências socioeconômicas, passaram a desenvolver ações e estratégias para o enfrentamento do crescimento da morbimortalidade destes acidentes. No final dos anos 90 e início dos anos 2.000, diversos países com elevados e crescentes números de mortos e feridos relacionados com a violência no tráfego (França, Alemanha, EUA, Inglaterra, entre outros), implementaram leis e recomendações com objetivo de reduzir estes números, assim como toda gama de problemas decorrentes (médicos, sociais, econômicos, …). O Brasil, como os outros países com elevada taxa de mortalidade por acidentes relacionados ao consumo de bebidas alcoólicas, nas últimas décadas, passou também desenvolver ações estratégicas com objetivo de reduzir tal quadro de violência. Cabe ressaltar, como se sabe, que o consumo de bebidas alcoólicas pelos motoristas passou a se destacar como um dos principais fatores de risco na condução de veículos; por isso, a ênfase nas ações de prevenção ter grande foco na questão do álcool (“se beber, não dirija”). Foi neste cenário que em 2008 que surgiu a “Lei Seca”, ou Lei Federal n. 11.705/2008.

O aumento da produção e do consumo de bebidas alcoólicas em grande parte do mundo, tornou-se a causa de inúmeras doenças ligadas ao Alcoolismo Crônico, está na base de vários problemas clínicos de natureza neuropsicológica, tais como, distúrbios da atenção e do nível de consciência, comportamento impulsivo e obnubilação do juízo crítico como efeitos imediatos do uso/abuso de álcool (violência urbana e doméstica, queda na produção e acidentes de trabalhos, homicídio/feminicidio, síndrome alcoólica fetal (SAF), etc,…). Neste sentido, os Acidentes de Trânsito com vítimas fatais passaram a ser a primeira causa de morte na faixa de 18 a 39 anos em nosso país. Cabe aqui mencionar que dirigir após consumo de bebidas alcoólicas representa efetivo aumento de risco de mortes, em geral, por atropelamento, de crianças e idosos…

Nesse contexto, desde a metade do século passado, a produção e o consumo de bebidas alcoólicas vem aumentando, progressivamente, e se banalizando na sociedade em geral…. O Brasil se tornou assim, um dos maiores produtores mundiais de bebidas alcoólicas, em grande parte devido a uma estratégia de marketing bastante eficiente e a uma publicidade bem-feita que, mesmo com a existência da Lei n. 9.294/1996 que impõe restrições às propagandas de bebidas alcoólicas, a indústria da cerveja cresceu de modo espetacular. Somos hoje o 3º maior produtor mundial de cerveja, atrás apenas da China e dos EUA.

Há cerca de 40 anos, a recomendação de combate ao uso de álcool por motoristas passou a ser bem aceita e com a Lei Seca, amplamente adotada pela opinião pública, apesar de algumas críticas e reclamações de alguns. No entanto, apesar dos esforços, nos últimos 20 anos o Brasil passou a constar da lista dos países com maiores índices de mortalidade no tráfego. Esse aumento preocupante coincide com um crescimento exponencial na produção e consumo de cerveja. Em 2000, a produção era de aproximadamente 2.0 bilhões de litros por ano, enquanto em 2022 alcançou cerca de 18.0 bilhões de litros por ano, representando um crescimento de 900%, enquanto a população brasileira cresceu apenas 30% no mesmo período (de 150 milhões em 2000, para 205 milhões em 2022).

Esse crescimento desproporcional na produção de cerveja foi impulsionado, em grande parte, pelo público jovem e feminino, evidenciado pela grande frequência de jovens e mulheres nos bares não só nas grandes cidades, mais também nas pequenas cidades do interior, sobretudo nos fins de semana. Apesar do consumo crescente de outras bebidas alcoólicas, como vinho e destilados, é a cerveja que lidera a preferência, devido à percepção errônea de ser uma bebida “fraca”, o que muitas vezes a coloca fora dos limites da lei.

Diante desse quadro, era previsível que, na ausência de ações estratégicas eficazes de políticas públicas por parte dos governantes, autoridades da Saúde e da Segurança, houvesse um aumento da mortalidade e número de feridos. Quando a Lei Seca (Lei n. 11.705/2008) foi promulgada, o número de mortes por ano causadas por bebida alcoólica estava um pouco acima de 37.000 pessoas (18,5 mortes/100 mil habitantes). Nos anos subsequentes, de 2010 a 2014, houve um aumento de mais de 20%, atingindo 45.000 mortes por ano, em 2013 (22,5 mortes/100 mil habitantes). Porém, a partir de 2015, o número de mortos de acidente de trânsito, passou a cair, continuamente, ficando no nível de antes da Lei Seca. Devemos aqui levar em conta outros fatores que atuaram objetivamente nesta queda: certa depressão da economia com redução da circulação do transporte de cargas e de passageiros, a Pandemia da Covid-19 que quase “paralisou” o Brasil e o Mundo. Embora, não se deva tirar o mérito das ações de prevenção adotadas desde a Lei Seca. Quanto a importante iniciativa da ONU através da I Década Mundial de Segurança Viária – 2011/2020, pouco se falou no Brasil (e talvez no resto do mundo…!?). Daí todos reconhecerem que a meta de redução de 50% do número de mortos relacionado com os acidentes viários, ficando longe de ser alcançada, deveria realizar a II Década Mundial de Segurança Viária com a mesma meta para 2030.

É importante ressaltar que a introdução maciça de motocicletas no trânsito contribuiu significativamente para o aumento dos acidentes graves e com vítimas fatais; atualmente, 40% dos sinistros envolvem motociclistas, como frequentemente relatado nos noticiários diários.

Assim, diversos países, incluindo a França e outros na Europa, EUA, China, Índia, entre outros, já no final do século XX, passaram a dar maior importância ao enfrentamento desse grave problema de Saúde Pública, com o apoio e incentivo da ONU/OMS. Embora o foco principal tenha sido no combate à condução sob efeito de álcool, outras medidas, como o uso de cinto de segurança, airbag, melhoria na estrutura dos veículos, sinalização viária aprimorada, restrições ao uso de celulares, implementação de leis mais rígidas e aumento da fiscalização, resultaram em mudanças significativas. No entanto, é inegável que o fator humano ainda é o grande diferencial para mudar esse quadro, apesar dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), comumente utilizados para a prevenção de acidentes, terem um papel muito importante.

Há, portanto, muito a ser feito em colaboração com todos os parceiros envolvidos, direta ou indiretamente, nessa complexa questão dos acidentes de trânsito. Destaca-se a oportunidade de desenvolver programas de ensino, pesquisa e extensão em parceria com colegas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de outras instituições, incluindo as Universidades de Lille (França) e do Porto (Portugal), que possibilitaram avanços na busca por soluções que minimizem as graves consequências desses acidentes e seus impactos indesejados. Há esperança de que eventos sobre Segurança Viária possam ser catalisadores de uma nova fase de progresso e conquistas nesse campo.

Por fim, no âmbito dos desafios futuros, vale lembrar da Audiência Pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, sob coordenação do Ministro Luiz Fux, que abordou a abrangência e aplicação da Lei n. 11.705/2008, a Lei Seca. Durante a sessão, foi apresentada a recomendação dos 5 passos da Lei Seca:  informação, educação, conscientização, fiscalização e penalização.

Além disso, ao analisar as campanhas sobre Segurança Viária seguindo as diretrizes da ONU/OMS, considerando as terríveis consequências humanas e socioeconômicas, é crucial levar em consideração as peculiaridades agravantes do cenário brasileiro. Entre elas, se destaca uma extensa frota de veículos, a má condição da infraestrutura viária, a falta de educação e conscientização sobre a violência no trânsito, a deficiência nas leis e uma cultura insuficiente de respeito ao próximo. Ademais, é preocupante o fato de o Brasil ser um dos maiores produtores de bebidas alcoólicas do mundo, ocupando o terceiro lugar em produção de cerveja, atrás apenas da China ou dos Estados Unidos.

Nesse contexto, é com grande satisfação que, neste mês do “Maio Amarelo de 2024”, participamos do Fórum de Segurança Viária realizado no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia – Ministério da Saúde/Sistema Único de Saúde (SUS), em colaboração com o Detran Rio, CET-Rio, Programa da Lei Seca – Coordenação, Rio-Ônibus, ISP-RJ e Corpo de Bombeiros-RJ. A complexa e séria questão dos acidentes de trânsito no Brasil continua demandando a mais alta atenção e empenho de todos os envolvidos, incluindo a sociedade civil e as universidades, assim como ocorre em outros países com desafios semelhantes. É oportuno retomar esses esforços com novos protagonistas, tanto do setor público quanto privado, revitalizando inclusive o intercâmbio técnico-científico profissional com parceiros internacionais, visando favorecer o desenvolvimento, avanços na área da segurança viária, na redução do número de mortos, feridos, outras perdas sociais e materiais.

Por último, é relevante ressaltar que, face à magnitude dessa questão de Saúde e Segurança, organismos internacionais como a ONU e a OMS lançaram, em 2010, em Moscou, a Primeira Década Mundial de Segurança Viária 2011-2020, com a ambiciosa meta de reduzir em 50% a morbimortalidade relacionada a acidentes de trânsito. Diante do não alcance, de modo geral, da meta proposta, foi instituída a Segunda Década Mundial de Segurança Viária 2021-2030, mantendo a esperança de uma significativa redução da taxa de morbimortalidade no trânsito.

Profº José Mauro Braz de Lima, PhD

Profº Associado IV de Medicina/Neurologia da UFRJ; Membro Efetivo da Assoc. Bras. de Med. de Tráfego; Membro Efetivo da Assoc. Bras. de Estudo de Álcool e Drogas; Mestre e Doutor em Neurologia pela UFRJ; Pós-Doutor em Neurociência pela Universidade de Paris; Ex-Presidente da ANERJ/Acad. Bras. de Neurologia 2012 – 2014; Diretor Médico da Clínica Evolução e Saúde; Diretor Científico do Instituto Brain Connect de Neurologia;

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