Dia 28 de setembro de 2023 ocorreu uma audiência pública promovida na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) pelas Senadoras Soraya Thronicke (PODEMOS/MS), Damares Alves (REPUBLICANOS/DF), Mara Gabrilli (PSD/SP) e pelos senadores Paulo Paim (PT/RS), Eduardo Girão (NOVO/CE) e Dr. Hiran Gonçalves (PP/RR) sobre os riscos de não mudar a regulamentação do cigarro eletrônico, atualmente regulamentado no Brasil pela RDC n 46 de 28 de agosto de 2009 da ANVISA e ratificada em 2022 pela mesma agência com a deliberação do Relatório final de Análise de Impacto Regulatório (AIR) que proíbe a comercialização, importação e propaganda de todos os tipos de dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) no Brasil.
Dentre os motivos para marcação desta audiência, a Senadora Soraya Thronicke alegou ser terminantemente contra o tabagismo, porém alega ter recebido informações sobre cigarros eletrônicos que a fizeram repensar no assunto já que para a senadora “muito mais perigoso do que regulamentar, é não regulamentar, por não sabermos quais as substâncias nossa população está consumindo”.
Certamente, é importante o debate de ideias e diferentes pontos de vistas. Mas, o que pode verdadeiramente estar por trás da audiência do senado sobre a “regulamentação” do cigarro eletrônico no Brasil?
Então vamos aos fatos!
Quem é contra o tabagismo precisa saber que a mesma indústria do cigarro convencional já tinha fabricado um dispositivo semelhante de entrega de nicotina desde 1979. Porém, o sabor não era agradável e havia receio de se chamar a atenção de agências regulatórias já que negavam que o cigarro convencional causasse qualquer dano à saúde. Além dessa estratégia antiética, outras frases impactantes foram acessadas em documentos internos após sentença judicial:
“Nicotina causa adição. Nosso negócio é sobre vender uma substância aditiva”, RJ Reynolds, 1975
“O que o fumante faz por si mesmo pode ser só de sua conta, mas o que ele faz ao não fumante é outra coisa muito diferente. Vemos nisso o mais perigoso elemento conhecido para a viabilidade da indústria tabageira (…). O antídoto estratégico a longo prazo para a questão do fumo passivo é, no nosso entendimento, o desenvolvimento e a ampla divulgação de indícios médicos claros e dignos de crédito de que o fumo passivo não é prejudicial à saúde dos fumantes.”, Roper Organization, “A Study of Public Attitudes Toward Cigarette Smoking and The Tobacco Industry”, 1978.
Publicamente, negaram que a nicotina causava dependência e que a poluição tabágica ambiental era prejudicial até 1998, quando o mundo constatou ter sido enganado com a exposição desses documentos. Outros fatos que as indústrias do tabaco já sabiam e negavam eram a associação com diversos tipos de cânceres, doenças cardiovasculares e mortalidade prematura. Ou seja, trata-se de uma indústria cuja principal estratégia é gerar dúvidas e desinformar em nome de seus próprios lucros.
No início do século, um chinês, chamado Hon Lik que presenciou a morte de seu pai tabagista por câncer de pulmão desenvolveu o que passou a ser conhecido como cigarro eletrônico para seu próprio uso. Para que não perdesse o lucro de seu produto, precisou se associar com uma indústria do tabaco por litígios com patentes. Dentre os vários litígios, já havia processo pela possibilidade de dano cardiovascular, apontando para os riscos à saúde. A partir de então, houve disseminação do cigarro eletrônico que aprimorou seu design, odor e sabor, além de, claro, a intensidade de entrega de nicotina.
Assim como de costume, a desinformação foi a principal estratégia. Por exemplo, escolheram termos que davam a entender que se tratava de produto inócuo, como o verbo “vaporizar”, espalhavam que se tratava apenas de vapor de água e que, por isso, não haveria risco de poluição ambiental. Filmes colocavam falas de protagonistas explicando que se tratava apenas de vapor de água (“O turista”) e artigos financiados pela indústria divulgavam falácias para haver respaldo científico. Dentre os artigos, um grupo de profissionais financiados pela indústria decidiram por consenso e sem análise bioquímica que o produto era 95% mais seguro que o cigarro convencional. Tal estudo foi altamente publicizado e até hoje é repetido por aqueles que nem sequer se deram ao trabalho de lê-lo. Outro estudo comparava reposição de nicotina ao uso de cigarro eletrônico com e sem nicotina e concluía que os que ganhavam o cigarro eletrônico “paravam de fumar”. Seletivamente, ocultaram que os participantes continuaram dependentes de nicotina e minimizaram o uso duplo de cigarro convencional e cigarro eletrônico por parte dos participantes.
Com isso, a indústria do tabaco busca respaldo “médico” para que países os aceitem como estratégia para parar de fumar, quando o que tem acontecido é o uso indiscriminado de cigarros eletrônicos dos mais diferentes tipos de sabor e odor principalmente por adolescentes e por jovens que nunca haviam entrado em contato com nicotina e com os cigarros concencionais. Mesmo em países que permitem o comércio, não se sabe a composição, o que também é uma estratégia sabida da indústria.
Outro grande equívoco é comparar a Política Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT), num país de dimensão continental como o Brasil, exemplo de redução verdadeira e importante da cultura do tabaco, com países que não possuem tratamento gratuito, não possuem ambientes livres de fumo ou outras medidas preconizadas pelo maior tratado de saúde pública que vem salvando vidas que é a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco assinada pelo Brasil em 2003.
Segundo a psiquiatra, Dra. Carolina Costa, vice presidente da ABEAD:
“Apoiar a comercialização de cigarros eletrônicos sem ouvir profissionais extremamente capacitados e exitosos em implementação de políticas de saúde pública, é colocar uma geração de jovens que poderiam ser não fumantes no abismo.”
A diretora-geral da Aliança de Controle do Tabagismo (ACT) Promoção da Saúde, Mônica Andreis diz:
“Os números comprovam que os jovens estão iniciando o fumo com o cigarro eletrônico, e não como substituição ao cigarro convencional, como querem preconizar defensores do produto.”
Para aqueles que acham que imposto vale mais do que saúde, é importante enfatizar que até hoje os impostos do cigarro convencional não conseguem pagar pelos custos diretos e indiretos das doenças que ele provoca ou agrava e também não conseguirá pagar os transplantes pulmonares de quem desenvolverá EVALI durante a adolescência. Até hoje, há mercado ilícito de cigarros convencionais que está mais ligado à corrupção do que à proibição à comercialização. Os políticos que usam esse argumento para apoiar o livre comércio devem entender que não há criminalização do usuário que já adquire seu cigarro eletrônico pela internet, terra sem lei. Isso não irá parar de acontecer, mas o acesso aumentará, aumentando a quantidade de cidadãos desinformados e dependentes graves de nicotina, contemplando o objetivo principal de uma indústria que se importa apenas com seus próprios lucros.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), morrem mais de 145 mil pessoas no Brasil todos os anos por doenças decorrentes do uso de produtos de nicotina, que, mesmo sozinha como medicamento, nunca foi inócua e possui contraindicações. Assim, é importante confiar em profissionais capazes e compromissados com a saúde da população. A COVID foi um exemplo de que não escutar os profissionais da saúde pública pode sair caro para todos. Mas, especialmente, para os representantes do povo que não os protegeu já que a história não esquecerá seus nomes.
A enfermeira Alessandra Calixto, do HCPA de Porto Alegre e também uma das vice-presidentes da ABEAD reforça:
“Embora o vapor produzido pelos cigarros eletrônicos possa parecer menos prejudicial do que a fumaça do tabaco convencional, ele ainda contém uma série de substâncias tóxicas e carcinogênicas. O líquido contém não apenas nicotina, mas também propilenoglicol e glicerol, que podem ser inalados e prejudicar os pulmões e vias aéreas”.
Segundo dados do Índice Global de Interferência da Indústria do Tabaco fundamentado em informações sobre a interferência da indústria e nas respostas dos países e governos para reduzi-la lançado em 2019, com base em dados do ano anterior, e contou com a participação de 33 países dos cinco continents nos mostra que em 2020, o índice cresceu e se baseou nas experiências de 57 países, revelando que:
- A indústria do tabaco aumentou as atividades ditas de “responsabilidade social corporativa” (na prática, puro marketing, na grande maioria das vezes), durante a pandemia;
- A indústria do tabaco tentou interferir no desenvolvimento de políticas públicas macro;
- A indústria do tabaco intensificou o lobby para fortalecer a influência;
- A indústria pressionou para a liberação/promoção de produtos de tabaco “alternativos” (especialmente, os dispositivos eletrônicos para fumar);
- Interações desnecessárias com a indústria comprometeram governos;
- A falta de transparência continua um problema;
- Vários países seguem a oferecer incentivos à indústria;
- A maior parte dos países não soube enfrentar situações de conflito de interesse;
- Os países ainda veem a indústria do tabaco como essencial à economia
Selene Franco Barreto, presidente da Associação Brasileira de Estudo de Álcool e outras Drogas (ABEAD) informa que a associação enviou um ofício antes da audiência solicitando respeitosamente conhecer o posicionamento da Excelentíssima senadora Soraya Thronicke, mas não obteve ainda respostas formais da mesma.
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