Por Alessandra Diehl

Lendo o texto da Nora D. Volkow, M.D., psiquiatra, cientista e diretora do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas publicado em 15 de julho de 2024 no Blog dela, motivei-me a traduzi-lo e comentar brevemente tentando fazer um paralelo com a realidade brasileira. Fiquei pensando no nossos país e guardada as devidas proporções do tipo de droga (pois não vivenciamos uma crise de opioides), e a quase inexistência de dados de TUS e população carcerária do Brasil de forma sistemática, penso que pouparíamos muito $$ e vidas se esta população fosse devidamente tratada do Transtorno por uso de substâncias (TUS) por aqui também!

O texto diz o seguinte:

A crise de overdose está tirando vidas em todo os Estados Unidos da América (EUA), mas atinge novos níveis de desespero no sistema de justiça criminal. A overdose é a principal causa de morte entre as pessoas que retornam às suas comunidades após estarem na prisão. Fornecer tratamento para a adição nesses ambientes poderia mudar isso.

Cerca de 60% das pessoas encarceradas têm um transtorno por uso de substâncias (TUS), em muitos casos um transtorno por uso de opioides. Quando pessoas com dependência química deixam a prisão e retornam às suas comunidades, estão em alto risco de voltar a usar drogas e sofrer uma overdose. Sua tolerância às drogas diminuiu durante a prisão, e o fentanil é predominante o suprimento de drogas nas ruas. Mesmo uma recaída pode ser fatal.

Permanece ainda a crença equivocada de que pelo simples fato de a pessoa estar na prisão isso já impediria alguém de usar drogas. Mas essa crença é imprecisa e perigosa. Como cientistas, olhamos para a pesquisa para nos guiar. E quando a pesquisa mostra estratégias com benefícios claros, elas devem ser implementadas.

A Food and Drug Administration (FDA) aprovou três medicamentos para transtorno por uso de opioides: metadona, buprenorfina e naltrexona. Todos os três são eficazes, seguros e salvam vidas. Mas eles são lamentavelmente subutilizados, particularmente em ambientes de justiça criminal.

Um estudo de 2020 em Rhode Island estimou que as mortes por overdose poderiam ser reduzidas em 30% no estado se as prisões e as cadeias disponibilizassem todos os três medicamentos para aqueles que precisassem deles. Estudos também mostram que pessoas que recebem esses medicamentos enquanto estão na prisão são menos propensas a voltar ao uso de substâncias e mais propensas a continuar com o tratamento na comunidade posteriormente.

Menos da metade das cadeias em todos EUA, e menos de 10% das prisões estaduais, oferecem todos os três medicamentos. Enquanto 96% das cadeias forneciam o medicamento de reversão de overdose naloxona para a equipe, apenas 1 em cada 3 fornecia naloxona e treinamento sobre como usá-la para cidadãos recém-libertados durante o período crítico em que estavam retornando às suas comunidades.

Negligenciar o fornecimento de acesso a esses tratamentos que salvam vidas e medidas de redução de danos cria lacunas mortais para as pessoas quando deixam a prisão. As repercussões reverberam por comunidades e gerações. Elas aprofundam as desigualdades raciais e a super-representação de comunidades negras dentro do sistema de justiça criminal. Elas causam devastação para crianças e famílias.

Fornecer medicamentos para transtorno por uso de opioides em prisões e cadeias beneficia a saúde pública e a segurança pública. É rentável. Pode ajudar a quebrar o ciclo de reincidência. Pode reduzir a carga no sistema de saúde mais amplo, incluindo departamentos de emergência.

Programas em todo os EUA estão em andamento para oferecer naloxona e medicamentos para transtorno por uso de opioides em prisões e cadeias, juntamente com instrução, treinamento e apoio social. Agências federais lançaram programas para ajudar as pessoas a gerenciar a abstinência nas prisões e fornecer suporte financeiro para cuidados de saúde para pessoas que estão prestes a reentrar na comunidade. Uma regra revisada recentemente publicada sobre a metadona agora permite que qualquer prisão registrada como hospital ou clínica dispense medicamentos para transtorno por uso de opioides em certas circunstâncias.

Líderes da aplicação da lei estão começando a ver como o tratamento para a dependência química aumenta a segurança para todos. Chris Donelan, o xerife do Condado de Franklin, Massachusetts, fez parceria com pesquisadores para estudar o que acontece quando prisões oferecem todos os três medicamentos aprovados pela FDA para transtorno por uso de opioides. Sua prisão tornou-se uma das poucas no país a ser licenciada como um programa de tratamento de opioides.

“Quando alguém é preso em nossa instalação, muitas vezes somos o primeiro provedor de tratamento que a pessoa vê em anos”, disse Donelan aos seus parceiros de pesquisa da Universidade de Massachusetts. “Esses tratamentos salvam vidas e ajudam as pessoas a entrar em recuperação. O tratamento torna o trabalho de nossa instalação muito mais fácil. Temos menos brigas, menos contrabando e uma instalação muito mais segura.”

Desde 2019, os Institutos Nacionais de Saúde têm financiado parcerias em todo os EUA para descobrir como vincular pessoas com dependência ao cuidado durante e após seu tempo no sistema correcional. Esses pesquisadores estão prontos para compartilhar novas evidências à medida que surgem, o que ajudará outras comunidades a fazer mudanças baseadas em dados para que possam implementar o que é mais eficiente em ambientes de justiça.

Ainda há um longo caminho a percorrer. Há um suprimento perigoso de drogas nas ruas, sistemas de tratamento fragmentados, falta de financiamento, falta de treinamento, estigma generalizado e a logística complexa trabalham contra pessoas com TUS enquanto elas tentam reconstruir suas vidas após a prisão. Apoio na recuperação e continuidade do cuidado são essenciais durante esse período vulnerável.

Fundamentalmente, a melhor ou única opção de um indivíduo para receber tratamento para a dependência química não deve ser durante a prisão. Em um mundo ideal, sistemas de tratamento e prevenção nos EUA abordariam proativamente os determinantes sociais da saúde e as necessidades de saúde mental para interromper o ciclo entre a dependência e o encarceramento. Afastar-se da criminalização dos transtornos por uso de substâncias em direção a uma abordagem de saúde pública removeria uma prática estrutural chave que perpetua desigualdades. Melhoraria a vida das pessoas e de suas famílias.

O contexto do Brasil

O Brasil é o terceiro país do mundo com o maior número de encarcerados. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente existem cerca de 850 mil pessoas privadas de liberdade. As questões ligadas ao uso e comercialização de drogas são um dos principais motivos de encarceramento no Brasil, sendo que a maior parte da população carcerária do país é negra (70%) e jovem (entre 18 e 29 anos), tendo cursado ensino fundamental incompleto e advinda de camadas sociais menos favorecidas.

Estudo realizado por Freire, Pondé e Mendonça (2012), em duas unidades prisionais da Bahia, sinalizou que o uso abusivo ou a dependência do álcool durante a vida esteve presente no depoimento de 61% dos entrevistados que se encontravam em regime fechado. O uso de outras drogas, relacionado a um padrão de dependência, foi prevalente em 14,8% para maconha, 12% para cocaína ou crack e 0,9% para inalantes. Maconha (6%), cocaína e crack (0,6%) também foram citados como substâncias de abuso atual. A maconha foi citada como causadora de dependência ao longo da vida em 20% dos casos, seguida da cocaína e crack (11,5%).

Apesar do Brasil já possuir uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (Pnaisp), instituída pela Portaria Interministerial 1/14, a Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados aprovou em abril deste ano de 2024 a proposta que inclui, no Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), a garantia de tratamento dos usuários e dependentes químicos privados de liberdade.

Mas até agora este e outros projetos seguem em tramitação e os presos brasileiros sem tratamento adequado e o Brasil perdendo a oportunidade de economizar dinheiro e salvar e recuperar vidas!

Fontes:

FREIRE, A. C. C.; PONDÉ, M. P.; MENDONÇA, M. S. C. Saúde mental entre presidiários na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. In: COELHO, M. T. A. D.; CARVALHO FILHO, M. J. (Orgs.). Prisões numa abordagem disciplinar. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 121-130.

Everyone deserves addiction treatment that works — including those in jail | National Institute on Drug Abuse (NIDA) (nih.gov)

Alessandra Diehl

Psiquiatra, mestre e doutora pela UNIFESP, pós doutora pela USP de Ribeirão Preto. Especialização em dependência química e sexualidade humana. Membro do Conselho Consultivo da ABEAD

@dra.alessandradiehl

 

 

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